
"Sempre que choveu, parou." Você provavelmente sairá da peça Terra sem Mapa com essa frase retumbando na cabeça.
Popular em alguns países, a expressão aparece em uma das mais tocantes histórias contadas neste espetáculo poético e intimista que está em cartaz todas as quintas-feiras, até 15 de maio, no Estúdio Stravaganza, em Porto Alegre (veja detalhes ao final do texto).
É uma oportunidade para ver em ação dois dos mais talentosos atores da cena gaúcha: Mirna Spritzer e Sergio Lulkin, que estrearam o trabalho em 2023 para celebrar 45 anos de carreira e amizade.
São eles que assinam também a dramaturgia e a direção, tendo como colaborador artístico Carlos Mödinger.
Agridoce como a vida
O ditado "Sempre que choveu, parou" aparece em um conto do livro Terra sem Mapa, do escritor e crítico literário uruguaio Ángel Rama, sobre uma menina que achava que choveria para sempre. A chuva, claro, funciona como metáfora para os problemas da vida.
A obra de Rama, de onde vem o título do espetáculo, é uma das inúmeras fontes da dramaturgia, que mescla referências de autores como Michel Azama (Cruzadas), Marcel Cohen (A Cena Interior), Lina Meruane (Tornar-se Palestina), Paulina Chiziane (O Alegre Canto da Perdiz) e Camila Sosa Villada (O Parque das Irmãs Magníficas) com lembranças familiares dos atores para falar sobre os povos que deixam tudo para trás em busca de um novo lar.
A multiplicidade de referências é bem digerida na forma de uma dramaturgia coerente, que em nada lembra uma mera colagem. Entrelaçando teatro, memória e migração, Terra sem Mapa encanta pela delicadeza.
O tema árido das travessias interculturais — muitas vezes motivadas por guerras, perseguições ou privações — ganha um tom lúdico nessa peça agridoce como a vida.
Teatro sem artifícios

Em um cenário "vazio", reduzido à tradicional caixa preta do teatro, os personagens Luba (Mirna) e Vrum (Lulkin) compartilham com o público histórias, canções e danças que parecem emanar da memória, uma lembrança puxando a outra.
Tudo no espetáculo é reduzido ao essencial: a iluminação de Ricardo Vivian obtém ambientações quentes e frias com uma paleta de cores econômica; os figurinos de Rô Cortinhas, em tons terrosos, remetem a algum lugar do passado; e a trilha sonora de Gustavo Finkler confere uma atmosfera nostálgica à encenação.
Terra sem Mapa busca um teatro sem artifícios tecnológicos, que homenageia, em seu artesanato, o teatro como contação de história, como brincadeira. No centro da ação está o jogo entre atores. Onde termina a vida e começa o teatro? "O mundo é um grande palco", escreveu Shakespeare, "e os homens e as mulheres são atores".
Experiências em comum

Mirna e Lulkin estão muito à vontade como Luba e Vrum, respectivamente, que remetem aos avós ou bisavós de muitos espectadores, independentemente de sua origem.
Quem estiver familiarizado com a tradição judaica, por exemplo, identificará referências como a canção em iídiche Oyfn Pripetshik ou a receita de sopa de kneidelach.
Terra sem Mapa evoca, acima de tudo, as experiências em comum entre os migrantes, lembrando tanto os povos que formaram o Brasil quanto os atuais deslocados de guerra e, mais do que nunca, os refugiados climáticos.
O próprio lema "Sempre que choveu, parou" ganhou novo significado com a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul, que ocorreu um ano após a estreia da peça: remete à resiliência necessária para superar a tragédia.
Enganosa simplicidade
Frente à inexorável marcha da humanidade, o espetáculo foca o que resiste apesar de tudo e que jamais pode ser subtraído à força: a memória, a cultura, a tradição, o afeto.
São coisas simples, mas a simplicidade é uma ideia enganosa: faz parecer fácil o que requer uma vida inteira para ser lapidado. Podemos supor que foram necessários quase 50 anos de carreira para Mirna e Lulkin chegarem a esta Terra sem Mapa.
Peça de teatro "Terra sem Mapa"
- Quintas-feiras, às 20h, até 15 de maio
- Estúdio Stravaganza (Rua Doutor Olinto de Oliveira, 68, bairro Santana), em Porto Alegre
- Ingressos a partir de R$ 33,95, à venda pelo Entreatos ou na bilheteria do local
- Abertura do bar e da bilheteria uma hora antes do espetáculo