Tome muito cuidado se for ler sobre A Garota da Agulha (Pigen med Nålen, 2024) antes de assistir ao filme dinamarquês que concorre com Ainda Estou Aqui no Oscar internacional. Alguns críticos andam contando demais sobre a trama do título disponível desde sexta-feira (24) na plataforma de streaming MUBI. E pelo menos um colega revelou logo no primeiro parágrafo uma informação crucial, que é guardada a sete chaves pelo diretor Magnus von Horn.
Não importa que seja referência a uma história real ocorrida no país escandinavo: trata-se de um spoiler violento para o público brasileiro, que provavelmente não conhecia os fatos agora vertidos em ficção.
Escrito por Von Horn e por Line Langebek Knudsen, A Garota da Agulha é o terceiro longa-metragem do cineasta sueco-polonês de 41 anos (o anterior, Suor, de 2020, também pode ser visto na MUBI). Competiu no Globo de Ouro e no Satellite Awards e ganhou duas categorias na premiação da Academia Europeia: melhor design de produção, para Jagna Dobesz, e melhor trilha sonora, para Frederikke Hoffmeier.
Trata-se de um desses filmes difíceis de ver por uma segunda vez, tamanho o sofrimento infligido à protagonista encarnada por Vic Carmen Sonne. "O mundo é horrível", alerta uma personagem coadjuvante interpretada por Trine Dyrholm, de Rainha de Copas (2019). Ainda mais para as mulheres (e sobretudo em uma era pré-feminismo), desassistidas, invisibilizadas, castigadas.
A esplêndida direção de fotografia em preto e branco assinada por Michal Dymek, com inspiração no Expressionismo Alemão, no cineasta dinamarquês Carl Theodore Dreyer e em Monstros (1932), de Tod Browning, não ameniza a experiência do espectador. Pelo contrário: o embelezamento da via-crúcis sugere um certo sadismo de Von Horn, além de reacender o debate sobre a estetização da miséria, da violência e da dor. (A propósito, a lista de indicados ao Oscar de melhor filme internacional do ano passado também tinha um título que provocava reflexões semelhantes, o italiano Eu, Capitão, sobre a odisseia dos imigrantes africanos.)
O filme tem início no fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A Dinamarca era neutra, mas milhares de seus cidadãos serviram nas forças armadas alemãs. Entre eles, estava o marido da fictícia Karoline, jovem costureira em uma fábrica têxtil de Copenhague que produz uniformes militares. Ela é uma viúva na prática, mas não tecnicamente: sem certidão de óbito, não tem direito a um bônus salarial.
Quando Karoline surge em cena, ela está devendo 14 semanas de aluguel. Despejada do apartamento onde mora, passa a viver em um lugar com vidraças quebradas, uma enorme goteira, mofo e ratos. As coisas só pioram daí em diante, incluindo uma gravidez que vai levar a protagonista a conhecer Dagmar, a dona de uma agência clandestina de adoção.
Narrar mais episódios da história é privar o espectador do fluxo de martírio e perturbação ao qual será exposto. Este é um filme em que seres humanos se transformam em gárgulas grotescas, como prenuncia a montagem de abertura. Este é um filme em que a esperança é um fiapo prestes a se romper. Este é um filme em que, para sobreviver, a personagem principal terá de afundar no lodo. Carregaremos para sempre as manchas do desamparo e da crueldade, mesmo que em algum momento voltemos a ser banhados pela luz e pelo amor.
É assinante mas ainda não recebe minha carta semanal exclusiva? Clique aqui e se inscreva na newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano