Emilia Pérez (2024), o filme mais odiado dos últimos tempos, está chegando aos cinemas de Porto Alegre. Desta quinta-feira (30) ao domingo (2), o musical que recebeu 13 indicações ao Oscar terá sessões de pré-estreia. No dia 6 de fevereiro, entra em cartaz.
O longa-metragem é dirigido por Jacques Audiard, cineasta francês de 72 anos que já foi premiado três vezes no Festival de Cannes. Ganhou o troféu de roteiro por Um Herói Muito Discreto (1996), coescrito por Alain Le Henry, o Grande Prêmio do Júri por O Profeta (2009) e a Palma de Ouro por Dheepan: O Refúgio (2015). No Festival de Veneza, levou o Leão de Prata de melhor direção por Os Irmãos Sisters (2018).
A personagem principal de Emilia Pérez foi inspirada em um capítulo do romance Écoute (2018), de Boris Razon, inédito no Brasil. Na trama, Manitas (papel da atriz trans espanhola Karla Sofía Gascón) é um temido chefão do narcotráfico mexicano que contrata uma advogada da Cidade do México, Rita Mora Castro (a estadunidense Zoe Saldaña, presente nas três maiores bilheterias do cinema: Avatar, Vingadores: Ultimato e Avatar 2), para forjar sua morte e ajudá-lo a ressurgir como a mulher que sempre quis ser. A atriz e cantora Selena Gomez interpreta Jessi, esposa de Manitas e mãe de seus filhos.
No Oscar, Emilia Pérez quebrou o recorde de indicações para uma produção não falada em inglês, que pertencia a O Tigre e o Dragão (2001) e Roma (2018), ambos com 10. O título francês com diálogos em espanhol concorre nas categorias de melhor filme, direção, atriz (Karla Sofía Gascón), atriz coadjuvante (Zoe Saldaña, que realmente arrasa), roteiro adaptado (por Audiard, Thomas Bidegain, Léa Mysius e Nicolas Livecchi), fotografia (Paul Guilhaume), edição (Juliette Welfling), maquiagem e cabelos, som, música original (Clément Ducol e Camille), canção original (com El Mal e Mi Camino) e filme internacional.
O currículo inclui duas conquistas no Festival de Cannes (o Prêmio do Júri e um troféu para o elenco) e quatro Globos de Ouro: melhor comédia ou musical, longa em língua não inglesa, atriz coadjuvante (Saldaña) e canção original (El Mal). Recebeu 11 indicações ao Bafta, da Academia Britânica, 10 ao Critics Choice, dos críticos estadunidenses e canadenses de rádio, TV e internet, e três ao SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA.
O tamanho da consagração é proporcional à enxurrada de críticas negativas. Um meme que circula nas redes sociais resume como o ódio a Emilia Pérez conseguiu colocar lado a lado grupos antagônicos.
Aos detratores dos musicais, que não suportam personagens que param no meio de cenas dramáticas para cantar e dançar, se uniram os fãs do gênero. Há quem considere as melodias esquecíveis, as letras (que foram escritas em francês e depois traduzidas para o espanhol), constrangedoras, e as coreografias, simplórias. Talvez o número mais comentado seja o de La Vaginoplastia, que também simboliza outra união inesperada.
Transfóbicos, evidentemente, nem precisam assistir a Emilia Pérez para serem contra o filme. Mas pessoas trans e estudiosos sobre gênero, sexualidade e políticas do corpo também se queixaram. Em artigo publicado no jornal El País, o filósofo espanhol Paul B. Preciado, diretor do documentário Orlando: Minha Biografia Política (2023), escreveu: "Embora seja apresentado como o resumo do cinema moderno repleto de números musicais e invenções visuais e narrativas, Emilia Pérez é, quando se conhece a história das representações de pessoas trans, um pergaminho de ruínas semióticas coloniais e binárias tão previsíveis quanto anacrônicas. (ALERTA DE SPOILERS) O filme perpetua uma visão psicopatológica da transição de gênero baseada em quatro premissas: criminalização, exotização etnográfica, representação médica-cirúrgica da transição de gênero e assassinato".
Por falar em "exotização etnográfica", racistas e xenófobos, por natureza, detestam um filme que destaca atrizes e personagens latinas, incluindo uma artista negra (Zoe Saldaña). Mas a população supostamente retratada em Emilia Pérez também manifesta repúdio. Resumidamente, porque Jacques Audiard não filmou no México, não escalou atrizes mexicanas para os papéis principais (e a dificuldade de Selena Gomez para falar espanhol virou motivo de zombaria) e contou que não pesquisou sobre o país para escrever a história, refletindo uma postura arrogante e eurocêntrica. Há quem reclame da própria abordagem como musical de um tema tão pesado, a violência do narcotráfico, que já provocou quase 500 mil mortes e cerca de 60 mil desparecimentos.
No X, a jornalista mexicana Cecilia González disse que Emilia Pérez "é tudo de ruim em um filme: estereótipos, ignorância, falta de respeito, lucro em cima de uma das crises humanitárias mais graves do mundo. Ofensivo. Frívolo". O romancista Jorge Volpi escreveu um artigo no El País em que pergunta qual seria a reação se um cineasta mexicano (seja Alfonso Cuarón, Alejandro González-Iñárritu ou Guillermo Del Toro) tivesse feito um filme sobre os tumultos nos subúrbios parisienses em um estúdio no México e com astros latinos de Hollywood interpretando franceses.
Um grupo de atores mexicanos criou um curta-metragem que parodia Emilia Pérez: Johanne Sacrebleu, dirigido pela artista trans Camila Aurora González. Durante 28 minutos, são mostrados inúmeros clichês franceses, como personagens trajando blusas listradas. "Conta a épica história de baguetes, croissants, queijos com cheiro forte e as dificuldades de não tomar banho todos os dias", diz a descrição do curta.
Os brasileiros, é claro, irmanaram-se com os mexicanos. Afinal, estão na torcida por pelo menos um Oscar para Ainda Estou Aqui, que tem Emilia Pérez como um dos rivais em três categorias: melhor filme, atriz (com Fernanda Torres) e longa internacional.
O clube do ódio formado em torno de Emilia Pérez inclui até os cinéfilos. Muitos estão indignados que um musical tão contestado tenha recebido mais indicações ao Oscar do que filmes aclamadíssimos — Sindicato de Ladrões (1954), Ben-Hur (1959), A Lista de Schindler (1993) e Gladiador (2000), por exemplo, somaram 12; Crepúsculo dos Deuses (1950), O Poderoso Chefão: Parte 2 (1974), Amadeus (1984) e O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003), 11.
Você que leu até aqui pode estar se perguntando: e qual é a minha opinião?
Primeiramente, concordo com as críticas sobre a falta de representatividade legítima dos mexicanos e acato os apontamentos das pessoas que têm lugar de fala para tratar da condição trans.
Em segundo lugar, quero comentar sobre o descompasso entre o sucesso em Hollywood e o repúdio em muitas outras esferas. Aos olhos da indústria cinematográfica, tradicionalmente alinhada ao Partido Democrata dos EUA, Emilia Pérez é um filme transgressor e progressista, um veículo de oposição ao republicano Donald Trump, que, recém-empossado para um segundo mandato na Casa Branca, mandou deportar imigrantes ilegais (incluindo 4 mil mexicanos) e assinou decretos contra as pessoas trans.
Por fim, acho válida a ideia de um musical (empolgante em alguns números, como El Mal) que retrata a violência do narcotráfico e não vejo em Emilia Pérez um desrespeito a essa tragédia cotidiana e à dor das famílias — que, claro, têm todo o direito de se sentirem ofendidas. O cinema é um refúgio da fantasia, e a ficção encenada por Jacques Audiard propõe que até mesmo um homem selvagem e cruel é capaz de se transformar e de se redimir. A exigência de realismo, a meu ver, anula-se diante de um gênero que intrinsecamente cria um distanciamento e convida à estilização, ao exagero e ao sonho.
É assinante mas ainda não recebe minha carta semanal exclusiva? Clique aqui e se inscreva na newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano