Canina (Nightbitch, 2024), que valeu a Amy Adams uma indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz em comédia ou musical, chegou ao streaming sem passar pelos cinemas — está desde sexta-feira (24) disponível na plataforma Disney+. Como o título brasileiro sugere, o filme é sobre a vida de cão que muitas — ou quem sabe todas — as mães levam.
Trata-se da adaptação de um romance inédito no país, Nightbitch (2021), de Rachel Yoder. A diretora é Marielle Heller, a mesma de O Diário de uma Adolescente (2015) e Um Lindo Dia na Vizinhança (2019).
É um filme que forma uma trilogia informal com outros dois lançados em 2024: Babygirl, de Halina Reijn, e A Substância, de Coralie Fargeat. Além de serem dirigidos por mulheres, retratam as pressões exercidas pela sociedade sobre a população feminina, abordando questões como maternidade, sexualidade, etarismo e padrões de beleza.
O que separa os três títulos é o tom. Enquanto Babygirl trafega entre o drama romântico e o thriller erótico, Canina e A Substância abraçam o fantástico e até o terror, mas sem abrir mão do humor.
Seis vezes indicada ao Oscar, mas nunca premiada, Amy Adams encarna a protagonista anônima de Canina. É uma artista de 40 e tantos anos que abandonou sua carreira para se dedicar integralmente a seu filho pequeno (papel de Arleigh Snowden) — enquanto o pai, interpretado por Scoot McNairy (de Sempre em Frente e a versão hollywoodiana do dinamarquês Não Fale o Mal), se ausenta durante vários dias por causa do seu trabalho. Quando ele tem de cuidar do menino para que a esposa possa fazer um raro programa noturno, diz uma frase tão cretina quanto comum: "Vou ficar de babá".
Com o tempo, a rotina puxada impacta a sanidade da personagem, que começa a acreditar que está virando um cachorro. O filme não tem pudores para mostrar transformações no corpo de Amy Adams, como o surgimento de seis tetas no seu abdômen e de uma cauda na parte inferior das costas. Mas — e aqui talvez valesse um alerta de spoilers — investe menos no horror do que se poderia imaginar.
O melhor de Canina é a desmitificação da maternidade, que se faz acompanhar por um convite para a reconexão com nosso lado animal, no sentido de entendermos melhor nosso comportamento, nossas emoções e nossos impulsos. A diretora Marielle Heller comentou: "Não falamos muito sobre se tornar pai ou mãe como o rito de passagem que realmente é. É uma grande transformação de identidade. Para mim, senti-me completamente mudada em um nível celular. Eu não me reconhecia quando olhava no espelho ou no meu casamento, quando meu parceiro e eu nos olhávamos".
O filme cobra uma paternidade mais ativa, lembrando aos pais os benefícios de que dispõem — para começo de conversa, seu trabalho é renumerado. Canina rende bem quando aposta na comédia amarga, especialmente quando confunde a percepção do espectador, como na cena do tapa. Um exemplo desse recurso é dado logo no início da trama. Enquanto está fazendo compras no supermercado, a protagonista encontra uma outra mulher, que pergunta: você ama ficar com seu filho em casa o tempo todo? E complementa: "Deve ser tão maravilhoso".
A personagem de Amy Adams responde:
— É uma boa pergunta, sabe? Mas é complicado. Porque, olha, eu ia amar me sentir satisfeita. Mas em vez disso eu só me sinto presa dentro de uma prisão cruel que eu mesma criei e onde eu me torturo até restar comer biscoitos de figo à meia-noite pra não chorar. E as normas sociais, as expectativas de gênero e a boa e velha biologia me forçaram a me tornar essa pessoas que eu não reconheço, e que fica brava o tempo todo. O tempo todo. E eu adoraria direcionar meu trabalho artístico para articular uma crítica à modernidade, mas meu cérebro não funciona como antes de ter o bebê, e eu fiquei burra. Eu tenho um medo profundo de que nunca mais serei inteligente ou feliz ou magra. Nunca mais.
Quando a câmera volta a focar a outra mulher no supermercado, a vemos repetindo a pergunta e o comentário, e então percebemos que aquele monólogo era somente um desabafo que a protagonista de Canina precisou sufocar. Um dos tantos desabafos que muitas mães por aí precisam sufocar.
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