Se quisermos evitar que amanhã ou depois outras crianças sejam assassinadas como Kerollyn, a menina de Guaíba encontrada em um contêiner de lixo, precisamos discutir exaustivamente todos os furos no que deveria ser a rede de proteção às crianças. Não basta focar apenas na negligência do Conselho Tutelar de Guaíba ou sugerir que essa instituição seja extinta porque na maioria dos municípios virou “um cabide de emprego” ou uma “incubadora de cabos eleitorais”.
Não foi só o Conselho Tutelar que falhou. Fica fácil para os outros atores dessa rede furada jogarem a culpa apenas no despreparo das pessoas que ignoraram os sinais de que a menina corria risco de vida. Ou que compraram a versão da “mãezinha” de que a criança estaria em surto, e recomendaram que chamasse o Samu, uma semana antes da noite em que acabou sendo morta.
Como se diz que a queda de um avião é resultado de múltiplos erros, a morte de uma criança por um familiar é fruto de uma série de ações e omissões que precedem o crime. É preciso reconhecer que, na maioria dos municípios, faltam políticas de proteção às crianças ou elas existem no papel mas, na prática, são repletas de furos. Por isso, é importante que o tema da proteção à infância seja abordado nos debates e nas entrevistas com os candidatos a prefeito.
Rede de apoio começa pelo município, envolve os conselhos tutelares, mas tem um espectro mais amplo: inclui o Estado, em todas suas dimensões. Isso inclui o Executivo, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Poder Judiciário e até os tribunais de contas, que devem fiscalizar, por exemplo, a oferta de vagas na Educação Infantil.
Histórias que só vêm à tona com as mortes
Se Bernardo Boldrini não tivesse sido morto pela madrasta, seguiriam ignoradas da sociedade as atrocidades cometidas contra ele, entre as quais a de não poder entrar em casa. Como a família era de classe média, Bernardo tinha amigos a quem pedir abrigo, mas o crime se consumou porque o Ministério Público e o Judiciário não confiaram na palavra de uma criança que, como Kerollyn, era tratada como “difícil”. A rede de proteção precisa ouvir a criança e, principalmente, ligar o alerta quando as denúncias se multiplicam.
Crianças invisíveis
São incontáveis os relatos de denúncias de abuso, maus tratos e negligência feitos aos conselhos tutelares que não têm qualquer consequência. Só quando morre uma criança é que se descobre que o crime poderia ter sido evitado.
ALIÁS
Todos nós que ignoramos a eleição para o Conselho Tutelar temos de fazer um mea culpa: erramos. Se existe uma eleição e hoje ela é distorcida pela disputa entre igrejas ou pela tentativa de apropriação por partidos políticos, a obrigação de quem não concorda com essas distorções é participar do processo, que certamente precisa ser aprimorado. Uma das formas de qualificar o Conselho Tutelar é exigir qualificação dos candidatos.