O ordenamento internacional atual, com pequenas variações, é o mesmo que vigora desde o final da Segunda Guerra Mundial, há 78 anos. Quando falo de ordenamento me refiro ao arcabouço institucional: os regimes, definidos por princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões de determinadas áreas em torno dos quais convergem as expectativas dos atores. Esse sistema, personificado pelo sistema ONU, mas não só, é a imagem e semelhança das nações vencedoras do conflito.
O problema é que esse desenho institucional não dá conta, como já se provou no Iraque, de arbitrar os problemas da atualidade. Sua efetividade é questionável. Os Estados Unidos de George W. Bush, por exemplo, atropelaram as Nações Unidas, seu Conselho de Segurança e todo ordenamento jurídico global para desbancar Saddam Hussein do poder. Tampouco esse sistema espelha a realidade pós-Guerra Fria. O mundo não é mais bipolar, tampouco unipolar. Há mais nações com armas nucleares, além de EUA, Reino Unido, Rússia, França e China já não são as únicas potências nucleares. A voz da Alemanha é talvez mais importante do que a do Reino Unido, e há atores emergentes, como Brasil, Índia e África do Sul.
É esse questionamento à ordem posta que o Brics faz, em uma releitura do Movimento dos Não Alinhados da Guerra Fria. São hoje, por mais que se negue em público, a antítese do G-7, do G-20 e da ordem liberal liderada pelos EUA. Sua ampliação, anunciada no final da conferência de Johannesburgo, nesta semana, é a materialização dessa postura.
Basta ver o perfil de alguns membros atuais e dos seis ingressantes. Entre os fundadores, China caminha para um duelo inevitável pela hegemonia global com os EUA, Rússia protagoniza a maior crise de segurança do sistema internacional no século 20 ao invadir a Ucrânia, um país independente europeu. Entre os seis novatos, há quatro ditaduras (Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito), um país em guerra civil, a Etiópia, e uma nação a caminho da falência, a Argentina.
Quem ganha com isso? A China, sem dúvidas. Há quem diga que o Brasil aceitou a ampliação do bloco em troca da concessão chinesa no documento final de uma frase que, cheia de vírgulas e cuidados, pode ser interpretada, com a cautela da linguagem diplomática, como um apoio à reforma do Conselho de Segurança da ONU, aspiração brasileira. Na verdade, a frase diz apenas que os países membros apoiam "as aspirações legítimas de países emergentes e em desenvolvimento na África, Ásia, América Latina, inclusive Brasil, Índia e África do Sul, de ter um papel mais ativo em assuntos internacionais, em particular na ONU, inclusive no Conselho de Segurança". Não é pouco, se pensarmos que a China aceitou incluir no documento a aspiração indiana, seu rival estratégico na Ásia. Pequim também consolidou-se, no evento, como o grande fiador do desenvolvimento da África, onde amplia influência com a Bealt and Road Initiative. Ao mesmo tempo, o regime de Xi Jinping conseguiu trazer para dentro do clube Irã e Arábia Saudita, os dois antigos rivais que só chegaram a uma paz recentemente com a mediação de Pequim - e não dos EUA, o mais atuante ator extrarregional do Oriente Médio até então.
O segundo vencedor da semana foi a Rússia. Falar de uma moeda para transações internas e de desdolarização soa como música para os ouvidos de Vladimir Putin, excluído do sistema financeiro internacional em retaliação à agressão da Ucrânia. Mais do que isso, o Kremlin ganhou novos velhos parceiros de caminhada. Com a entrada dos seis países no Brics, uma agremiação eminentemente política, a Rússia rompe, simbolicamente, com o isolamento - e manda um recado aos EUA e à Europa de que não está tão sozinha assim.
Sobre o Brasil, a concessão chinesa é prêmio de consolação. O ingresso da Argentina, um apoio ao vizinho cambaleante, e cujo ingresso pode ser revertido ali na frente por interesses divergentes do governo que será eleito em outubro. Porque reforma no Conselho de Segurança, desejo de Lula desde o primeiro mandato, embora necessária, passa ao largo do prédio das margens do East River, em Manhattan, onde o fica a sede do condomínio chamado ONU.