Entrei no táxi bem-humorada, rumo a um dos meus programas favoritos: iria ao cinema com uma amiga. Disse um sonoro boa-tarde e me acomodei. O motorista respondeu "Boa tarde, mas…". E essas reticências contêm todas as mazelas dos nossos complexos tempos. Ouvi, ouvi e ouvi. Cansei. Não dele, mas de tudo. Meu basta chegou quando veio a generalização. Todas as culpas em nós, todos nós, os desonestos. Então, perguntei a ele: "O senhor é desonesto?". E perguntei à minha amiga: "Tu és desonesta?". Diante das duas negativas, acrescentei: "Também não me considero desonesta". Portanto, dentro deste carro, 100% das pessoas se dizem honestas. Minha "pesquisa científica" de final de semana o fez calar. Não usei de veemência nem de raiva. Ele nos deixou no destino, nós duas comentamos o diálogo e ficou por isso. Mas fiquei pensando em como as generalizações também nos têm levado a esquecer de quantos milhares de conhecidos (e milhões de desconhecidos) podem ser classificados de honestos, gentis, generosos, solidários.
E, não sei por que, esse insignificante (ou seria significativo?!) evento me lembrou de outros dois, separados por décadas, nos quais gentileza, generosidade, compaixão, solidariedade se mostraram de um jeito simples e, ao mesmo tempo, marcante.
Estava, no início dos anos 1980, me deslocando de minha minúscula cidade para a então desafiadora Caxias do Sul. Para dizer a verdade, uma das primeiras viagens que fazia sozinha. Carregava uma malinha com roupas para os poucos dias do vestibular e, na mão, amarfanhado pelo nervosismo, um papel com o endereço da amiga que me abrigaria. Minha falta de prática me desembarcou no lugar errado. Escurecia, eu andava em círculos e ninguém por ali ouvira falar do nome daquela rua. Sem telefone celular, que sequer existia, sem Google Maps, sem Waze. Nada daquilo havia. Nem adiantaria encontrar um hoje anacrônico orelhão. Minha amiga não tinha telefone em casa. Poucos tinham, era um luxo. À beira do desespero, antes de sentar no meio-fio e chorar, pedi o que considerava uma última informação para um homem que observava duas crianças brincando na calçada.
Por sorte, ele seria o primeiro a me dar uma dica precisa: eu estava a quadras e quadras do meu destino, não conseguiria chegar a pé, não havia ponto de táxi num raio razoável. Buscou dentro de casa um mapa e me apontou. Ele entrou de novo e voltou com a chave do carro, chamou as duas crianças e as acomodou no banco de trás. E anunciou por que as levava consigo: julgou que eu não me sentiria segura embarcando no carro sozinha com um desconhecido. Minutos depois, minha amiga, aflita, me recebia na porta do prédio. Só lembro de ter agradecido. Não recordo de ter perguntado o nome dele nem o das crianças. Gostaria de ter sabido. Nunca me esqueci da compaixão e da gentileza.
Mais de 30 anos depois, revivi a cena. Não aconteceu de novo comigo, mas com uma hóspede, uma amiga estrangeira que eu recebia. Acostumada a viajar pelo mundo – foi a primeira, e única, piloto de navio de carga que já conheci –, minutos após a chegada, eu tendo de trabalhar, ela me diz que queria conhecer Porto Alegre usando transporte público. Na nossa neurose por segurança, sugeri que usasse táxi pelo menos para voltar para casa. Só consegui convencê-la a usar lotação, que a deixaria na esquina, em lugar do ônibus. Ao final do dia, distraída observando a cidade, minha amiga só se deu conta de que havia passado do endereço quando o lotação parou no fim da linha. Com o orgulho ferido, ela decidiu fazer o trajeto até meu apartamento a pé. Estava longe, bem longe. Como eu, começou a andar e perguntar (nem faz tanto tempo assim, mas ainda não era comum o transporte por aplicativo, uma solução que pareceria tão simples…), até encontrar um homem… na janela, observando crianças que brincavam. Vou encurtar a história porque ela se deu exatamente igual à minha de 30 anos antes. A mesmíssima cena. Por compaixão e gentileza.
Quando ela me descreveu a pequena aventura, tremi. Por dois motivos: pelo óbvio medo do que poderia ter acontecido na nossa embrutecida Capital, mas muito por lembrar daquele episódio de décadas antes. E passei a contar as duas histórias juntas, como faço agora. Elas voltam à minha cabeça quando alguém menciona nossa falta de honestidade, de gentileza, compaixão, solidariedade… E me ajudam a evitar as generalizações. Elas não nos têm levado a lugar nenhum. Particularizar quem sabe nos leve a algum lugar.