
O que era "fake news" na segunda virou "truth news" na quarta-feira (9). Literalmente, porque a "pausa" de 90 dias na vigência das tarifas acima de 10% foi uma informação publicada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua própria rede que se chama Truth Social. O episódio equivale a uma retirada de tropas na guerra comercial movida pela Casa Branca.
Se terá mesmo 90 dias, se vai mesmo beneficiar produtos como aço e alumínio – que também ficariam com tarifa de 10% –, ninguém sabe com 125% de certeza, só para citar o número da nova alíquota da China. A decisão publicada sem detalhamento nem esclarecimentos criou novas incertezas. Mas foi suficiente para pausar também o derretimento nos mercados.
Se muita gente teve prejuízo financeiro, Trump perdeu algo mais precioso e mais difícil de recuperar: confiança. Quem negociar com ele a partir de agora sabe que o interlocutor não tem credibilidade. O presidente do EUA só admitiu a retirada por pressão de Wall Street e de seus apoiadores bilionários que perdiam... bilhões.
Tudo começou com a carta anual aos clientes de Jamie Dimon, presidente do JP Morgan, maior banco dos EUA. No texto, fez questão de destacar que "as recentes tarifas vão provavelmente elevar a inflação e estão fazendo com que muitos considerem uma grande probabilidade de recessão".
Outros ícones do mercado financeiro engrossaram o coro, como o bilionário e investidor Bill Ackman, fundador da Pershing Square e aliado de Trump. Comparou o tarifaço a um "inverno nuclear econômico autoinflingido". A quantidade de erros embutida na iniciativa começou a ficar clara, além dos efeitos de destruição de riqueza por perdas nas bolsas.
E avisou que "os investimentos das empresas ficarão sob impasse e os consumidores fecharão suas carteiras." E ainda disse que o tarifaço prejudica "gravemente nossa reputação com o resto do mundo, algo que levará anos e potencialmente, décadas, para ser reconstruído".
Essas avaliações passaram a pipocar em publicações como The Wall Street Journal, jornal focado no mercado financeiro que pertence ao grupo de Rupert Murdoch, outro aliado de Trump. A palavra mais repetida pelos agentes para classificar o tarifaço era "stupid". Depois de uma retirada de tropas, é hora de verificar mortos e feridos. Dá tempo de salvar muitos se, desta vez, Trump for confiável. Será?
Os erros em cascata no tarifaço
1. De diagnóstico: para Trump e sua turma de "terraplanistas econômicos", os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas americanos e são provocados por países "do mal". A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses déficits são provocados por... companhias americanas. A Apple, por exemplo, tem produção espalhada por todo o globo e assina iPhones e outros dispositivos com "Designed by Apple in California". Dá mais valor ao trabalho intelectual embutido e remunerado na venda do que à mão de obra da montagem. Em outro caso, a Nike tem 71 fábricas no Vietnã. São essas empresas que alimentam o déficit dos EUA com vários países, especialmente os que combinam mão de obra barata e de qualidade.
2. De objetivo: em tese, a meta de Trump é forçar empresas americanas –como Apple e Nike – a levar essa produção descentralizada de volta aos EUA para fugir das tarifas punitivas impostas por ele. Primeiro, esse processo leva anos: é preciso construir unidades, comprar equipamentos. E se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação. Segundo, outra meta é arrecadar mais para financiar os cortes de impostos que Trump planeja fazer sem impactar ainda mais a já pesada dívida dos EUA. Mas não são governos que pagam tarifas. Nem os cidadãos de outros países. Como as tarifas são repassadas aos preços, quem vai bancar o tarifaço será o americano que comprar produtos importados.
3. De concepção: o tarifaço era aguardado ao menos desde a posse. Empresas financeiras, como Goldman Sachs e universidades de primeira linha, como Yale, projetaram, na pior das hipóteses, tarifas lineares de 25%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade de sobretaxas de até 50% ou 125%, no caso da China..Tarifas mais alinhadas às projeções provocariam efeitos negativos – isso estava embutido nos estudos – mas não o derretimento de mercados que vimos.
4. De elaboração: como lida com tema tão sensível – o comércio do mundo todo – a definição das tarifas deveria passar por estudo profundo sobre as causas dos déficits e os possíveis impactos, certo? Nada, o United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". A inclusão de uma ilha povoada apenas por pinguins e focas nos 10% da "tarifa padrão" evidencia o grau de amadorismo.
5. De aplicação: o anúncio foi feito em 2 de abril. As tarifas padrão, de 10%, passaram a incidir já no dia 5 e as punitivas chegaram a entrar em vigor nesta quarta-feira (9) antes de serem suspensas. Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior.
6. De avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota de 20%, somada à outra de 34%, deopis mais uma de 50% e agora uma nova de 125%. Mas o gigante asiático retaliou e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar".
Os impactos possíveis
Antes do anúncio oficial, bancos, universidades e órgãos de financiamento de exportações fizeram projeções sobre o impacto do tarifaço de Trump. Cada um adotou um cenário diferente para o aumento das alíquotas. A coluna segue mantendo, no final dos textos sobre o tarifaço de Trump, os principais pontos, agora com nova advertência: em tese, o que está valendo é uma tarifa única de 10% para todos, o que traz de volta algum alinhamento às perspectivas.
1. Goldman Sachs, uma das maiores instituições financeiras dos EUA: aumento na probabilidade de recessão de 20% para 45% (atualizado no dia 7 de abril), alta no índice de inflação mais observado pelo Fed de 3,5% (a meta lá é de 2% ao ano).
2. Laboratório de Orçamento da Universidade de Yale, com elevação de 13% na tarifa efetiva dos EUA: aumento de preços entre 1,7% e 2,1%, redução entre 0,6 e 1 ponto percentual no PIB e perdas de US$ 1 mil a US$ 1,3 mil para as famílias americanas.
3. Instituto das Economias em Desenvolvimento, ligado à Organização de Comércio Exterior do Japão (Jetro, na sigla em inglês), com tarifas de 25% dos EUA: queda de 0,6% no Produto Interno Bruto (PIB) mundial em 2027 (perda de US$ 763 bilhões), puxado por tombo de 2,7% no PIB americano de 2027 e forte impacto nos lucros de empresas americanas que dependem de componentes chineses.
4. Universidade Aston (Reino Unido), com tarifas de 25% sobre todas as importações, seguidas de retaliações na mesma alíquota: perda de US$ 1,4 trilhão na economia mundial e drástica elevação de preços nos EUA. Teria efeitos semelhantes ao da guerra comercial de 1930 que aprofundou a Grande Depressão.