A situação criada por Donald Trump provoca frases tão absolutas quanto "o Ocidente como o conhecíamos não existe mais", pronunciada por Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia (espécie de primeira-ministra do bloco). Nesse momento, é bom se acautelar para verificar se há poder de convencimento no mundo capaz de criar uma trégua na guerra comercial.
A concentração de riqueza nos Estados Unidos faz com que seu presidente tenha a sensação de ser dono do mundo, mas até o dono do mundo tem... credores. Esse é o papel dos países que detêm títulos do Tesouro americano, os chamados Treasuries. Os diferentes tipos de papéis emitidos pelo governo compõem cerca de 90% da dívida pública americana, de US$ 36,7 trilhões, o equivalente a 122,7% do PIB.
Os países compram esses títulos para compor suas reservas internacionais, necessárias em um mundo em que o dólar determina negócios globais e os Treasuries são o porto seguro dos portos seguros. Durante a crise, até essa noção que parecia imutável foi chacoalhada. Foi atribuída a um sinal de travamento na negociação desses títulos a gota d'água que fez Trump recuar das tarifas tresloucadas entre 10% e 50%, para além da forte pressão de Wall Street e dos amigos bilionários.
Chegou a haver uma especulação se o segundo maior detentor desses papéis, a China, teria provocado essa trava. Poder para isso, teria. Mas a discrição do gigante asiático e o orgulho da potência americana impediram, até agora, que isso fosse demonstrado. O que ficou claro é que os credores dos EUA têm, afinal, algum poder. E, como todos estão desafiados pelo vaivém tributário, essa pode ser uma forma de chamar Trump à racionalidade.
Estoque de Treasuries maior do que o da China, só o Japão tem, com 42% a mais de títulos americanos do que o vizinho da Ásia. Por coincidência, os japoneses ganharam prioridade nas negociações comerciais. Pode ser só coincidência mesmo, mas para alguém que só vê valor em cifrões, faria sentido.
O terceiro é um aliado histórico, o Reino Unido, que "só" enfrenta tarifa de 10%. Não teme alíquota punitiva no final dos 90 dias de "pausa" de Trump, ou a qualquer momento, considerado o vaivém. O Brasil aparece em 15º lugar, com US$ 199,1 bilhões em títulos do Tesouro americano no final do primeiro trimestre, mais da metade de suas reservas internacionais, de US$ 336,2 bilhões no mesmo período.
Os erros em cascata no tarifaço
1. De diagnóstico: para Trump, os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas. A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses resultados são provocados por... companhias americanas. A Apple tem produção espalhada por todo o globo e assina seus dispositivos com "Designed by Apple in California", assim como montadoras de carros e até de tênis, como a Nike e suas 71 unidades só no Vietnã.
2. De objetivo: em teoria, a meta é forçar empresas americanas – como Apple e Nike – a levar essa produção descentralizada de volta aos EUA para fugir das tarifas punitivas. Esse processo leva anos: é preciso construir unidades, comprar equipamentos. Se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação. Outra expectativa é arrecadar mais para financiar cortes de impostos que Trump planeja fazer sem impactar ainda mais a já pesada dívida dos EUA. Mas não são governos que pagam tarifas. Nem os odiados estrangeiros. Como as tarifas são repassadas aos preços, quem vai bancar o tarifaço será o americano que comprar produtos importados.
3. De concepção: o tarifaço era aguardado. Gigantes financeiras, como Goldman Sachs e universidades de primeira linha, como Yale, projetaram, na pior das hipóteses, tarifas lineares de 25%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade de sobretaxas de até 145%. Tarifas mais baixas provocariam efeitos negativos, mas não derretimento de mercados e perda de confiança nos Treasuries.
4. De elaboração: como era preciso fazer muitos cálculos, United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". A inclusão de uma ilha povoada apenas por pinguins e focas nos 10% da "tarifa padrão" reforça o grau de amadorismo.
5. De aplicação: o anúncio foi feito em 2 de abril. As tarifas padrão, de 10%, passaram a incidir já no dia 5 e as punitivas chegaram a entrar em vigor nesta quarta-feira (9) antes de serem suspensas. Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior.
6. De avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota que a essa altura soma inacreditáveis 145%. Mas o gigante asiático retaliou – com "gentileza", para até 125% – e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar". A OMC estima que essa soma inviabiliza 80% do comércio entre os dois países.