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Como secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia entre 2019 e 2020, Marcos Troyjo participou de negociações adicionais sobre a aplicação da tarifa de 25% sobre aço e alumínio no primeiro mandato de Donald Trump. Depois, atuou como presidente do New Development Bank (NDB, o chamado "banco dos Brics"). Antes, codirigiu o BRICLab, fórum especial sobre Brasil, Rússia, Índia e China da School of International and Public Affairs da Columbia University (2011-2018). No início de abril, estará em Porto Alegre para o Fórum da Liberdade, agora como fellow da Insead, escola de negócios com sede na França. Vai detalhar sua visão sobre a nova divisão do mundo entre o U7 (do inglês "up", ascensão) e o D7 (de "down", declínio). No primeiro, vê EUA, Índia, China e Arábia Saudita. No segundo, Japão, Rússia, Reino Unido e França.
Com seu conhecimento, já entendeu onde Trump quer chegar?
É a situação aquela no avião, quando o comandante pede, pelo sistema de som, que os passageiros retornem a seus assentos, fechem as mesas e coloquem o encosto na posição vertical e afivelem os cintos, porque 'estamos passando por uma área de...'
Turbulência?
Trumpulência. É um jogo de palavras com dois conceitos. Um é o de turbulência, porque chacoalha comércio internacional, fluxo de investimentos, ordem mundial. Mas também tem a noção da opulência, no sentido da riqueza. É a economia que tem US$ 30 trilhões de PIB nominal, quando nove das 10 maiores empresas são americanas. Todo o valor das empresas negociadas na bolsa de Frankfurt é menor do que algumas das big techs, como Nvidia, Microsoft ou Apple. Alguns anos atrás, a diferença para a China caia, agora voltou a aumentar. Então, o avião que Trump chega para pilotar é muito forte.
Como voa esse avião?
Parte de diagnósticos e vontades, ainda do primeiro mandato. Quer que os EUA voltem a ser uma potência na indústria manufatureira. E avalia que o sistema de comércio internacional que os EUA ajudaram a construir durante décadas privilegiou aspectos geopolíticos, não econômicos. Quer dizer, fez com que outras potências pudessem ascender, na visão de Trump em prejuízo aos EUA. Ele vê a relação com a China com lógica de soma zero, ou seja, quanto mais prospera a China, menos influentes e poderosos ficam os EUA.
Quais os efeitos da Trumpulência?
Um questionamento forte do sistema multilateral, do mecanismo de solução de controvérsias da OMC (Organização Mundial do Comércio). Desmultilateraliza o mundo e privilegia o fluxo bilateral. Agora, vale a relação EUA e México, EUA e China, EUA e Brasil. Trump entende que, ao privilegiar o formato bilateral, os EUA ficam mais fortes, faz com que o presidente possa transmitir sensação de vitória. Muitos economistas não veem déficit comercial como problema, Trump tem uma visão que poderia ser chamada de mais simples, de que déficit comercial pode ser problema. Também há peso do que ocorreu durante a primeira presidência dele. Na pandemia, os EUA precisavam de máscaras, mas não havia, de respiradores, e não havia (a China, grande produtora desses materiais, priorizou o abastecimento interno). Isso reforçou o conceito de geoeconosegurança (combinação de segurança à economia e à geopolítica).
Leva para onde ele quer chegar?
Trump não parece ser um sujeito estratégico, é mais tático. Valoriza vitórias que se acumulam em horas, dias, semanas. Esse é o principal paradoxo: muitas dessas medidas insularizam os EUA. Mas Trump está muito focado em promover um choque de competitividade interno. Observando os primeiros dias, vai ser uma característica dos 12 primeiros meses. É uma movimentação brutal, dramática, robusta de desregulação, desburocratização, busca de redução de cortes de gastos do governo e corte de impostos.
Pode incluir a saída dos EUA de FMI e Banco Mundial, como se especula?
Isso é um pouco diferente. Terminada a Segunda Guerra, surgiu a ideia de criar instâncias de governança com um tripé básico: um banco para dar liquidez, o FMI, um para a reconstrução da Europa, o Banco Mundial; e uma organização internacional de comércio. Houve conferência em Havana em 1948, na qual o delegado brasileiro foi Roberto Campos (avô do ex-presidente do BC). Mas não aconteceu. Na época, os EUA tinham 50% do PIB mundial, não tinha motivos paras se colocar em camisa de força. Houve apenas o Gatt (General Agreement on Tariffs and Trade, na sigla em inglês ou Acordo Geral de Tarifas e Comércio). A OMC só foi criada nos anos 1990. Como acumulou mais de 140 membros, ficou engessada. Mas o FMI e o Banco Mundial têm maioria americana na composição de capital. O presidente do Banco Mundial sempre é americano, o do FMI sempre é um europeu, o que é até meio cafona. Falar em sair desses organismos é meio 'épater la bourgeoisie' (chocar a burguesia, lema dos poetas chamados decadentes do final do século 19). Não está na alça da mira. Inclusive, há uma curiosidade: em abril, ocorre a primeira reunião do Fundo desde que Trump tomou posse, com expectativa de alongamento da dívida da Argentina a taxas amigáveis. Seria uma grande vitória para (Javier) Milei (presidente que apoia Trump e já adotou medidas semelhantes).
Existe essa previsão?
Seria uma reafirmação do apoio do FMI à Argentina, em cenário em que a equipe técnica tece elogio após elogio à gestão. Há uma situação em que a Argentina vai podendo relaxar os controles de capitais.
Voltar a ser potência manufatureira é uma ambição adequada na era da economia digital?
Peter Thiel, grande investidor em empresas de tecnologia, conhecido por ter sido um dos primeiros a apostar no Facebook, um dos líderes do ecossistema do Vale do Silício e um dos primeiros a embarcar no projeto de Trump, tanto em 2016 quanto em 2024 tem uma frase de referência, que é 'take Trump seriously but not literally' (leve Trump a sério, mas não literalmente). O presidente fala para o americano de Ohio, Indiana, Pensilvânia, Estados que foram a espinha dorsal do poderio americano. Se ele mantém o discurso e conquista vitórias pontuais, ainda que não mude a fatia do PIB representada por manufatura tradicional, significa que está entregando o que prometou. Com a economia digital, Trump vive quase que uma coalizão, a pax trumpiana digital. Os grandes caciques, com exceção de Bill Gates, estavam na posse.
Mas aí houve a turbulência do DeepSeek...
É uma característica do capitalismo competitivo. Por vezes, aparecem soluções muito disruptivas, a custo muito mais baixo. Virão de China, Índia, Emirados Árabes, Arábia Saudita. Todos terão impacto no modelo de negócios. Mas a maior parte do capital está nos EUA e na China, que vão fazer a chamada mudança consequencial, que gera muitas consequências.
Ao minar parcerias, as medidas de Trump embutem reforço à principal antagonista, a China?
Não diria que fortalece o antagonista. Qualquer nação precisa de previsibilidade para investimentos. Empresas americanas investiram em outros países, esse esforço leva de seis a sete anos, como os de papel e celulose. Isso exige regras claras e certa estabilidade. A Trumpulência não afeta só a relação entre EUA e China. Convida a outras geometrias de comércio. Europeus e chineses voltam a conversar. Africanos, que ficaram meio pendulares, olham os investimentos de longo prazo dos chineses. Mesmo países com contencioso muito pesado com a China, como Austrália e Japão, começam a recolocar o cabo na tomada. Os chineses precisam desempenhar um papel de muita frieza e estratégia, porque também não querem ver a relação com os EUA esfriar. Fala-se muito no déficit americano com a China. Mas não se leva em conta que a Walmart monta um centro de produção de embalagem plástica na China, com razão social chinesa e capital social americano, para ter custos mais baixos. Do ponto de vista da balança comercial, parece uma exportação chinesa, mas é comércio intrafirma.
Há risco, então?
Há outro assunto que ganha muita força e é fascinante. A principal vitória americana na Guerra Fria foi o chamado cisma (ruptura) sino-soviético. Kissinger (Henry, então secretário de Estado) foi a Pequim, organizou um contato entre Nixon (Richard, então presidente republicano dos EUA) e Mao (Tsé Tung, ou Zedong, como preferido atualmente) para retomada das relações com a China. Criou rachadura entre as duas principais forças políticas comunistas. A política de Trump empurra para uma aproximação entre China e Rússia. Talvez o mais interessante para os EUA seja não tomar atitudes e ações que venham a aproximar mais uma vez essas duas forças.
A China terá de ser o 'adulto na sala'?
Morei na China alguns anos e vou todo ano desde 2003. Eles têm um sentido de história diferente do nosso. Entendem os ciclos políticos no Ocidente como algo em podem obter vantagens pontuais. A leitura deles desse momento me parece muito realista: há um jogador forte e outro mais forte. O forte é a China, o mais forte são os EUA. Trump estendeu um cobertor de tarifas e cotas sobre quase todas as exportações chinesas, mas não é interesse retaliar na mesma proporção. Se essa dinâmica continuar, podem identificar setores da economia americana que tenham peso desproporcionalmente grande nos círculos de poder de Washington, como o setor agrícola, com obstáculos pontuais. Se a China restringir as compras de soja e milho, impacta regiões onde Trump foi vencedor.
Vai ser bom para os EUA?
Essa política americana talvez tenha algum efeito de reindustrialização, mas é potencialmente muito inflacionária. O novo presidente dos EUA quer que as indústrias voltem a produzir em território americano, mas para isso será preciso fazer um esforço de caixa. E não só exige recurso para isso, mas investimentos no Exterior que ainda não tenham maturado elevam o custo. Depois, será preciso empregar mão de obra mais cara. Agora, a hora de 'o inimigo do meu inimigo é meu amigo', pode forçar acordos como voltou a ocorrer com o livre-comércio entre União Europeia e Mercosul, que foi anunciado às pressas em dezembro.
E qual deveria ser a reação do Brasil?
Tentar minimizar danos e maximizar proveitos. Na corrida de Fórmula 1, se chove não dá para discutir a chuva. É preciso ver se temos os pneus certos, se a equipe de troca está preparada. Pode haver um rearranjo das cadeias de valor. Onde haverá investimento? Na Índia, que tem carga de 18% do PIB. na Arábia Saudita, que tem 12% ou no Brasil, com 35%. Vamos disputar uma corrida com outros em que estamos muito pesados. A carga nos EUA é de 27% e o objetivo é levar para 15%. A atratividade do Brasil fica muito depreciada. É um grande convite para o Brasil ir a um spa, fazer as reformas de que precisa.
A aparente cautela adotada no Brasil é adequada?
Em 1982, fui estudante de intercâmbio no EUA, e desde então estou lá todos os anos, depois atuei como diplomata. Então, conheço bastante, e não consigo lembrar de uma relação tão distante com o Brasil quanto agora.
Falta diplomacia presidencial?
Além disso, os países estão em momentos opostos. Lá, há uma busca por desregulação, desburocratização, eficiência e redução de impostos. Aqui, há desprofissionalização da atividade pública, superburocratização e aumento da carga tributária. Não há canais de comunicação para conversar nos bastidores ou para fazer valer pontos de vista em fóruns internacionais.
Economistas citam a falta tradicional de prioridade à América Latina como eventual alívio para o Brasil, mas agora os EUA têm um secretário de Estado de origem latina. Muda algo? O fato de o Brasil ter déficit comercial com os EUA não ajuda?
A questão é saber se as medidas serão exclusivamente movidas por questões econômicas. Em relação à Venezuela, será apenas economia? E Milei?
Sua expectativa é de que não seja?
Essas medidas não são surpresa para ninguém. Estavam nas folhas de chá. Não é bom para os EUA nem bom para ninguém. Outras agendas estão mudando. Muita gente chama a presidência de Trump de 'transacional'. Se for assim, as diferenças de visão de mundo não serão tão importantes, não haverá impacto tão grande nas duas maiores democracias do continente.
Como foi a negociação da qual participou no primeiro mandato de Trump?
Tínhamos canais abertos, então não machucou muito o setor. Agora, esses canais não estão mais abertos. Os americanos sempre foram muito transacionais. A gente quer algo, eles dizem 'se a gente fizer aqui, vocês fazem algo ali também'. Foi assim com a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para retirarem o veto, tivemos de abdicar de uma posição na OMC. Como muitos fundos passaram a privilegiar países que adotam regras da OCDE, não havia opção. A ministra Tereza Cristina (da Agricultura), o ministro (Paulo) Guedes (da Economia) ajudaram muito.