A conta do déficit primário de R$ 230,5 bilhões em 2023 teve anabolizantes: desse total, R$ 92,4 bilhões corresponderam ao pagamento dos precatórios pedalados em 2021. Sem esse custo extra, o rombo nas contas públicas do ano passado teria sido de R$ 138,1 bilhões, equivalentes a 1,3% do PIB.
Outra dívida herdada da administração anterior exigiu repasse de R$ 21 bilhões aos Estados, uma compensação muito parcial da mudança determinada pela União na cobrança de ICMS sobre combustíveis, energia e comunicações. Mesmo descontadas as "despedaladas", resta um enorme rombo que Haddad assumiu o compromisso de zerar neste ano.
Levando em consideração - como sugeriu o ministro - essa distorção, o especialista em orçamento Felipe Salto aponta aumento de 42,4% das despesas obrigatórias com controle de fluxo (que permitem controle/acompanhamento), que inclui o Bolsa Família, 7,9% nos benefícios previdenciários pagos, impactados pela correção do salário mínimo, e 15,3% nos gastos discricionários.
Por isso, ao longo deste ano, vai crescer a pressão por cortes de gastos, sejam orçamentários ou tributários. Na primeira frente, o ministro da Fazenda já pronunciou as três palavras mágicas, "corte de gasto", afirmando que há estudos em desenvolvimento no Ministério do Planejamento para aplicação ainda neste ano. A descrição feita por Haddad levou muitos analistas de contas públicas a vislumbrar lampejos de reforma administrativa nas entrelinhas:
— Penso que tem espaço, sobretudo se os três Poderes forem mobilizados. Um pacto a começar de cima para baixo, e aí cortando com racionalidade, levando em consideração justiça social, desigualdade, princípios com os quais todo mundo é capaz de concordar.
A reforma administrativa vem sendo objeto de queda de braço entre governo e Congresso, por mais que a ministra da Gestão, Esther Dweck, tenha afirmado estar "aberta ao diálogo" em entrevista à coluna. Como a relação, que já estava tensa, ficou ainda mais atritada com o veto presidencial a 10,5% do total de R$ 53 bilhões em emendas parlamentares no orçamento deste ano, algum terreno comum será preciso conquistar.
A outra frente segue sendo a preferida de Haddad, a de cortes no "gasto tributário", ou seja, no conjunto de renúncias fiscais que absorve parte dos tributos pagos pelos contribuintes e força a busca de fontes alternativas de arrecadação. Até agora, o ministro da Fazenda segue sem piscar na mira da meta de déficit zero neste ano, mas especialistas em contas públicas avaliam que essa missão já beira o impossível, ao menos sem cortes de despesa.
Nesta terça-feira (20), o boletim Focus publicado com atraso de um dia pelo Banco Central (BC), em decorrência de operação-padrão dos servidores da instituição, manteve a projeção de déficit no final deste ano em 0,8% pela sexta semana consecutiva. No entanto, é a estimativa da maioria da cerca de uma centena de instituições financeiras e consultorias formada antes da publicação do déficit fechado de 2023. Para quem acompanha no detalhe, não houve surpresa, mas mostra com mais dados o tamanho do desafio do déficit zero.
O que é déficit zero e por que é importante
A meta de déficit zero adotada pelo Brasil é um compromisso relacionado ao chamado "resultado primário". Quer dizer que o governo não vai gastar mais do que arrecada, descontadas as despesas com a dívida pública. Significa não comprometer recursos que não existem. Toda vez que há déficit, é preciso emitir títulos públicos, ou seja, aumentar o endividamento público. O problema do Brasil é que sua dívida já é muito maior do que a média dos países emergentes. Por isso, se não houver ao menos compromisso de redução futura da dívida, aumenta a pressão sobre a inflação e a dificuldade de reduzir o juro.