Maria Alicia Peralta é diretora executiva de Relações Institucionais e Engajamento do Carrefour, que assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público depois do espancamento e da morte de João Alberto Silveira Freitas em Porto Alegre. Nesta terça-feira (4), o grupo de origem francesa está adicionando um compromisso previsto no TAC e outros três que, segundo Maria Alicia, vão "acima e além" do acordo que alcança R$ 115 milhões. A executiva reconhece que os compromissos assumidos por empresas há 10 anos ainda não produziram efeitos suficientes para reduzir o racismo no Brasil, mas assegura que esse tema se tornou, para o grupo, "propósito e jornada".
Quais são as novas ações de combate ao racismo do Carrefour?
Depois da tragédia de Porto Alegre, estudamos o que mais podemos fazer para evoluir nessa busca de equidade racial. Temos um programa novo, com conteúdo novo, que não está dentro do TAC . Já trabalhamos com a nossa segurança, internalizando e eliminando terceirizados, estudamos o que mais poderíamos fazer na segurança para o futuro. Nos últimos anos, desenvolvemos com a Universidade Zumbi dos Palmares um curso superior de dois anos, que terá aprendizado baseado em casos concretos e com foco em segurança humanizadas, ou seja, cuidará das pessoas, não de bens materiais. O Carrefour será a primeira rede varejista com alunos nesse curso, mas não a única.
O Carrefour vai bancar o curso para seus funcionários?
Sim, nossa área de gestão de riscos identificou 90 pessoas para fazer esse primeiro curso, que terá aulas presenciais na universidade. Queremos que isso tenha impacto no mercado e seja adotado por outras empresas. Sempre pensamos no ecossistema, em como fornecedores e parceiros podem entrar nessa nova abordagem. Esse é um programa para qualquer funcionário, que se identifique ou não como pessoa preta ou parda.
Também vamos abrir um programa para afroempreendedores, voltado para startups de founders negros.
Também há programas específicos para pessoas negras?
Vamos fazer um desenvolvimento colaborativo interno, que a liderança negra pediu a partir da identificação de obstáculos na vida de quem faz carreira no mundo corporativo. É um espaço no qual colaboradores negros possam se desenvolver a partir da troca de experiências. conteúdos criados por eles e para eles. Não é um grupo de afinidade, é um treinamento feito a partir de vivências específicas. Também vamos abrir um programa para afroempreendedores, voltado para startups de founders negros. Vamos publicar um edital chamando esses negócios para contribuir em processo de inovação aberta, resolvendo problemas da empresa.
Esses programas fazem parte do TAC?
Tem uma parte que estamos anunciando hoje que é, o de bolsas de estudo de inglês para pessoas negras, mas todos os demais estão acima e além do TAC.
Priorizamos ações no Rio Grande do Sul, que foi a cena da tragédia. Com prefeituras e outras entidades, definimos ações voltadas a mulheres negras empreendedoras.
Qual é o balanço da aplicação dos compromissos?
Foram dois anos de aprendizado para o grupo para fazer algo relevante depois da tragédia do João Alberto. Temos oito frentes, o TAC é muito focado em educação, com bolsas de estudo e permanência para cerca de 800 pessoas. Como alguns alunos têm dificuldade de permanecer no curso por problemas financeiros, as bolsas de graduação, pós, mestrado e doutorado incluem uma ajuda para permanecer estudando. Um grupo enorme de faculdades se candidatou, cerca de 5 mil, mas ainda esperamos o resultado do edital. Agora, estamos selecionando alunos para 900 bolsas de estudo de inglês e vamos levar um grupo para intercâmbio na África do Sul. Priorizamos ações no Rio Grande do Sul, que foi a cena da tragédia. Com prefeituras e outras entidades, definimos ações voltadas a mulheres negras empreendedoras, com um programa para financiar o primeiro investimento. São mulheres que querem abrir um negócio e não tinham condições financeiras para começar.
O que o Carrefour já cumpriu do TAC?
Tem previsão de durar quatro anos, com ações todas apresentadas e aprovadas pelo MP. Dos R$ 115 milhões que concordamos em investir, cerca de R$ 68 milhões já estão comprometidos. No caso da bolsa de estudos, ainda não fizemos o aporte, mas os recursos estão reservados. Entre 60% e 70% da aplicação já está definida, não necessariamente desembolsada.
Se o TAC ainda não está cumprido, por que fazer ações "além e acima"?
Por entender que há ações que beneficiam o grupo. O entendimento do TAC era de que deveriam ser ações que independessem da atividade.
A consciência existe, a cobrança também, mas há um sentimento de que tem de evoluir com mais rapidez. É preciso empurrar para de fato avançarmos a outro patamar.
Como o Carrefour, que está investindo nisso, vê a evolução da consciência antirracista na sociedade?
Conversamos muito sobre isso na parceria com a Zumbi dos Palamares. Os jovens não aceitam retrocessos. Existem coisas e situações que claramente não são aceitáveis. A consciência das pessoas evoluiu, mas não se vê tanta representatividade em cargos de poder. Ou, pelo menos, não na mesma velocidade. Há 10 anos, entre 2012 e 2013, já havia compromisso de empresas com essa causa. Se vê que ainda não se chegou onde poderia. A consciência existe, a cobrança também, mas há um sentimento de que tem de evoluir com mais rapidez. É preciso empurrar para de fato avançarmos a outro patamar. Então, o avanço efetivo ainda não é tão considerável.
O grupo troca experiências com outras empresas para disseminar essa cultura antirracista?
Um grupo, o Mover (Movimento pela Equidade Racial, que inclui de Ambev à XP), com 47 empresas, foi criado a partir da tragédia. São empresas que sentiram que não estavam preparadas, com ambiente corporativo, para o que aconteceu como Carrefour. Hoje, estamos implantando todas as ações do TAC e avaliando o que é realmente efetivo, o que vai ser referência de efetividade. O Carrefour não se vê como exemplo, está passando por um processo enorme de aprendizado e quer compartilhar o máximo possível. Para o grupo, isso se tornou propósito e jornada. O racismo existe, está no Brasil inteiro. É um caminho longo e um desafio gigantesco. Mas temos de encarar.