Economista-chefe do Banco Votorantim, Roberto Padovani interpreta os movimentos da economia e do mercado há mais de três décadas. Acompanhou de perto a elaboração e a implantação do Plano Real. Foi sócio da Tendências Consultoria Integrada por 10 anos e, antes, atuou na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É graduado em Administração pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado em Economia pela FGV. Nesta entrevista, admite que fortes reações de mercado, como a da última quinta-feira (10) podem ser um "constrangimento" para o novo governo adotar medidas arriscadas.
Depois de se alterar pouco na campanha, o mercado concentrou toda sua reação no dia 10?
A leitura do mercado ao longo da campanha foi teórica e tinha por base três argumentos. Primeiro, nossa experiência histórica tem mostrado que transição política não implica revisão abrupta de regras ou mudanças repentinas. Segundo, o Brasil fez muitas reformas que trazem estabilidade, como a autonomia do Banco Central (BC). Terceiro, a eleição disputada, o Congresso com relativa autonomia e dois candidatos convergindo para o centro mostravam que teses de estabilidade econômica e política estavam sendo reforçadas. Foi se formando a noção de que, fosse qual fosse o eleito, não teríamos surpresas, até porque ambos eram mais ou menos conhecidos.
O que mudou na quinta-feira?
Passada a eleição, o mercado passou a conhecer a estratégia e a ajustar seus preços. Uma informação que vai ficando clara é que o futuro governo vai fazer expansão fiscal. Já se esperava, o debate sempre foi sobre a intensidade. Se for perto de R$ 200 bilhões, vai elevar o endividamento público. E essa alta acima da expectativa ocorre em um momento global muito complicado. Há uma desaceleração importante prevista para o mundo. O clima global é de aumento da aversão ao risco. Com mais medo, vem mais cautela, e os investidores tendem a punir países com má gestão econômica. Como o dólar fica mais pressionado pela expectativa de aumento de juro lá fora, isso leva à leitura de que o risco inflacionário aumenta. Com maior pressão, o BC fica mais cauteloso, o que significa subir ou não cortar o juro. O resultado dessas três visões - câmbio, inflação e juro - acaba implicando expectativa de menor crescimento e aumento da incerteza. É um ajuste fino depois da eleição. Pode não esperar necessariamente uma ruptura, mas o mercado começa a olhar no detalhe para a gestão econômica e impacto sobre preços e ativos. Como se diz no jargão, está precificando os cenários de política econômica.
O fato de não ter muita informação aumenta o prêmio de risco. Essa movimentação é um ajuste fino diante das sinalizações da agenda econômica.
Não ter indicado ministro da Fazenda importa?
É um fator que complica. Não é só sobre endividamento, também há um debate sobre regras fiscais sem ter um ministro conhecido e em um momento delicado, de cenário global de aversão a risco. Isso incorpora outro grau de incerteza. O fato de não ter muita informação aumenta o prêmio de risco. Essa movimentação é um ajuste fino diante das sinalizações da agenda econômica.
Há um valor de expansão de gastos considerado aceitável no mercado?
Não há uma pesquisa formal. Na minha experiência com colegas, era esperado algo ao redor de R$ 100 bilhões. Havia pouca dúvida de que os R$ 600 seriam mantidos. Só isso representaria R$ 55 bilhões. Somados impactos fiscais de desoneração de impostos, chega a R$ 100 bilhões. Então, havia expectativa de que iria aumentar o gasto e que haveria discussão de regras fiscais. O que impacta é o tamanho. E o fato de a discussão de propostas para a regra fiscal estar ocorrendo sem um líder na área econômica. Quem está tomando decisões são políticos, com pouca consideração sobre temas como o aumento da dívida pública e o impacto no crescimento.
No caso da manifestação do presidente eleito, ficou claro que houve impacto político (...). E o dia seguinte também trouxe a percepção de que talvez a reação do mercado seja um constrangimento para que decisões políticas sejam adotadas.
O dia seguinte foi de relativa calma porque funcionaram os recados de tranquilização do entorno de Lula ou por ser da natureza do mercado?
O mercado vive uma dia de cada vez. Na sexta-feira (11), a informação da reabertura econômica chinesa deixou todos mais calmos. O mercado brasileiro é muito dependente de fluxos de capitias. No caso da manifestação do presidente eleito, ficou claro que houve impacto político, mesmo em um dia em que os mercados lá fora estavam reagindo bem à inflação menor nos Estados Unidos. E o dia seguinte também trouxe a percepção de que talvez a reação do mercado seja um constrangimento para que decisões políticas sejam adotadas. No governo Bolsonaro, quando se sinalizava mais endividamento, o mercado também reagia e se voltava atrás.
Nem sempre houve recuo, saíram as PECs dos Precatórios e a chamada de Kamikaze até por Paulo Guedes...
Em momentos que se discutiu aumento do Auxílio Brasil e mudança de regras fiscais, voltaram atrás. Ou ao menos se criou um constrangimento adicional, que é importante, mesmo que não volte atrás. Depois, as reformas dos úlitmos anos dão certo fôlego ao país, o que dá certa robustez para enfrentar momentos de dificuldade. E sempre é bom lembrar que impulso fiscal sempre dá certo impulso ao consumo, o que rende crescimento moderado e de curto prazo.
Já passei por crises mais complicadas do que a atual, nos 1980, no final dos 1990, em 2008, na crise europeia de 2011. Essa crise de 2023 não é a pior, mas está entre as menos previsíveis.
O mercado tem intensificado as reações, não só as de natureza política?
Esse é um ponto fundamental. Ao longo de 2022, a imprevisibilidade tornou mais difícil antecipar o comportamento da economia. E quando não consegue antecipar, o mercado acaba sendo guiado por dados de curto prazo. Essa instabilidade acompanhou a história de 2022. Já passei por crises mais complicadas do que a atual, nos 1980, no final dos 1990, em 2008, na crise europeia de 2011. Essa crise de 2023 não é a pior, mas está entre as menos previsíveis.
Por que?
Uma das consequências da pandemia foi uma aceleração da inflação inédita nos últimos 30 anos. A minha geração não tinha visto inflação de 10% nos Estados Unidos e na Europa. Como a economia antecipa a reação dos BCS? Costuma se basear no padrão estatístico dos últimos anos. Neste momento, não há padrão estatístico a ser seguido na Europa e nos EUA. A inflação só caiu nos últimos 30 anos. Então, não se sabe como os BCs devem reagir. Essa é uma fonte importante de incerteza. É uma inflação difícil de ser combatida, por ser disseminada, e ainda não se sabe até quanto será preciso subir o juro para voltar à meta. É uma pergunta sem resposta.
Entre os vários instrumentos para combater a inflação no mundo e no Brasil, um é o fiscal. Restringe o crescimento, inibe o repasse por parte das empresas e derruba a inflação ao consumidor.
Há outras perguntas sem resposta?
Há grande incerteza sobre o enxugamento da liquidez. Em 2008, com a economia global muito endividada, o afrouxamento monetário (em inglês, quantitative easing, conhecido pela sigla QE) veio com uma injeção de recursos que não virou consumo, por ter sido destinada à quitação de dívidas. O novo experimento de 2020 (quando houve novas injeções de recursos para evitar que a pandemia gerasse recessão ainda mais forte) foi diferente. A estratégia foi a mesma, mas em intensidade maior - EUA, Europa, Ásia e emergentes -, mas não havia tantas famílias endividadas, e as pessoas partiram para o consumo. Foi isso que ajudou a gerar inflação. Agora, não basta subir juro, tem de reduzir a liquidez ao mesmo tempo.
Deve ser feita enquanto o juro é elevado?
Essa é a grande discussão, se pode ou não pode. Como se trata de vender títulos, afeta a parte longa da curva de juros. São papéis de 10 anos que, quando começam ser vendidos, retirando liquidez (em vez de circular na economia, o dinheiro fica aplicado nesses títulos), o preço cai e o juro sobe. Como o mercado de títulos vai reagir? O primeiro sinal, dado no mês passado pelo BC da Inglaterra, teve de ser interrompido, porque houve dificuldades. Entre os vários instrumentos para combater a inflação no mundo e no Brasil, um é o fiscal. Restringe o crescimento, inibe o repasse por parte das empresas e derruba a inflação ao consumidor. Esse cenário faz com que seja muito difícil antecipar o cenário dos próximos meses, por isso os investidores estão vivendo um dia de cada vez, com reações mais intensas.