
Sabe essas pessoas que ao se despedirem cravam o pé na porta inventando assunto? Depois os levamos ao portão e o mesmo acontece, e ainda, para entrar no carro é outra ópera. Não as julguem mal, elas sofrem de angústia de separação. A operação tartaruga da saída é o teatro que revela seu drama.
Creio que o mote central da peça Esperando Godot, de Beckett, é uma hipérbole dessa angústia de separação. Claro, a peça é muito mais do que isso, ela capta o espírito do pós-guerra. Uma Europa que, em pouco mais de uma geração, viveu duas guerras bestiais. O sofrimento de uma guerra não acaba com ela. Depois de lutar para não morrer, inicia-se algo tão cruel quanto, a luta para permanecer vivo. A fome, o frio e a ausência do Estado colocam todos contra todos pelos poucos bens restantes.
Foram os sobreviventes desse caos que criaram o teatro do absurdo. Era uma época em que a razão estava em baixa. O que os arrasava era a ideia de que não se aprende nada com o passado – que na guerra perdem todos – e ainda, que não há palavras para descrever o horror que viveram. Esta peça mostra o sem sentido da condição humana, em um texto que beira o pesadelo e, em certos momentos, berra o pesadelo.
A tensão da peça gira em torno de pares que não se aturam e não conseguem se separar. Afundados numa relação sadomasoquista, ameaçam partir e sempre ficam juntos. Afinal, um é a memória viva do outro. Argumentar a separação é um discurso para constituir uma individualidade e não desfazer-se totalmente no outro. Godot é o terceiro que nunca chega para reconhecê-los, é a esperança de uma dignidade que nunca mereceram. A peça contém uma descrença dos laços humanos, como se fossem outra guerra. Mas os personagens ficam, juntos, em nome da louca esperança.
A peça está no Teatro Renascença até 25 de junho. Além de conhecer uma obra clássica, vale pela atuação de cinco grandes atrizes desta ponta sul do Brasil. A saber, Janaína Pellizzon, Sandra Dani, Arlete Cunha, Lisiane Medeiros e Valquíria Cardoso. Luciano Alabarse escalou um elenco todo feminino para a peça.
Desde Auschwitz, calçados usados simbolizam a morte. Nesta cenografia há um abuso deles. Este objeto só cumpre sua função em pares, soltos, os calçados não fazem sentido. Servem como ilustração dos personagens, eles não se separam para não perderem o sentido e suas histórias. Os outros sabem ser infernais, mas são nossa razão de ser.