Gostava imensamente de meu sogro. Tínhamos pequenas rusgas, afinal, vindos de mundos tão diferentes. Ele era judeu húngaro e perdeu sua família para o nazismo. Eu nem sempre entendia a sutileza seus justos resmungos históricos, ou lidava bem com uma aspereza que provinha de uma melancolia incontornável.
Apesar de ser psicanalista, falo com desenvoltura o engenherês – a língua e a lógica dos engenheiros. Este era o dialeto comum que dissolvia a distância. E com um adicional de complexidade, ele era engenheiro químico, mesmo assim entendia seu ofício. Ser filho de bioquímica me deu uma intimidade com o assunto, isso somado à bênção de bons professores na matéria. Do círculo afetivo dele, apenas eu lhe entendia e quebrava a solidão do especialista. De inhapa aprendia mais química.
János, rebatizado de Giovanni nos papéis do barco italiano que o trouxe, rebatizado de Juan nos documentos uruguaios que ganhou, levou um tempo para me perdoar por um motim. Cassei familiarmente sua carteira de motorista. Não estava sozinho, mas os outros vacilavam.
Os fatos estavam do meu lado. Voltando sozinho do Uruguai, na interminável reta que liga o Chuí a Pelotas, saiu da estrada pelo outro lado e mergulhou de borco num charco. Minha sogra e eu fomos resgatá-lo. Soubemos por testemunhas que não havia nada na pista. Ele dormiu na direção.
Juan, com a idade, cochilava durante conversas longas, cochilava jogando xadrez, cochilava sempre que podia. Versado na técnica do sono instantâneo, voltava melhor do reino de Morfeu e quase sem perder o fio do sucedido. No trânsito, isso não se revelou uma boa ideia.
Nossa questão era evitar que ele se machucasse ou viesse a causar danos a outros. A lógica é óbvia, mas o peso emocional é complicado. Os velhos vivem sucessivas perdas, que maldade é essa de lhes impor mais uma? Pode parecer assim, mas maldade mesmo é deixá-los colocar-se em risco ou ficar na conta do acaso um atropelamento de criança, de ciclista, ou de outro idoso distraído.
A questão é que nem todos sabem a hora de parar. Não os culpo, é realmente duro abrir mão da autonomia. Aqui é que entram os familiares. A tarefa é árdua, sei porque a enfrentei, mas é necessária. Faz parte das nossas responsabilidades como cuidadores responsáveis ajudá-los a perceber seus limites.
Pais que vacilam em pôr limites nos filhos, por medo de perder o amor deles, não são bons pais. Filhos que não colocam limites em pais incapacitados, por medo de magoá-los e vir a perder um pouco do afeto, não são bons filhos.
Espero que eu tenha a sabedoria de parar quando os riscos surgirem. Tenho duas filhas cheias de opinião, e que conseguem ser bem convincentes nas suas argumentações. Tenho certeza que, se não largar o volante quando for o caso, ganharei delas um cartão vermelho.