
Foi no caminho até o Estúdio H, na RBS TV, onde apresento o Sem Filtro, que a história que vou contar reapareceu na minha cabeça com riqueza de detalhes. A lembrança era de um sábado lindo em Porto Alegre e meu trabalho era numa casa noturna. Não, eu não era garçom, nem DJ, muito menos promoter. Eu era produtor de um programa de Esportes na TVCOM, uma espécie de Globo News da RBS, só que muito mais solta e muito mais louca.
A TVCOM transmitia seu sinal por UHF e também estava na NET, a primeira tv à cabo que chegou ao Brasil. Uma ideia genial pra falar só das coisas locais e, pelo fato de não estar presa a nenhuma grade de programação nacional, tinha a liberdade de ficar horas e horas ao vivo. Era assim nas competições esportivas, era assim nas eleições e em qualquer evento importante da cidade ou do estado.
A TVCOM fez muita coisa boa e, quando saiu do ar, deixou um vazio na audiência e uma saudade eterna nos profissionais que passaram por lá. Eu sou um deles.
Mas vamos voltar pra casa noturna porque eu lembrei o nome dela: Veneza. Lembrei não. Chamei a minha amiga Pati Leivas no WhatsApp e ela lembrou. Para quem conhece Porto Alegre, a casa ficava numa das esquinas mais valorizadas e de frente pro Parque Moinhos de Vento. Lá a minha função seria ajudar o Maurício Saraiva que era um dos apresentadores do programa e faria entradas ao vivo numa festa de comemoração dos 17 anos do título mundial do Grêmio. O evento receberia heróis da conquista e a grande expectativa da noite era se Renato Portaluppi apareceria ou não na festa? E muito importante para contextualizar: no ano 2000, Renato ainda não tinha treinado o Grêmio. Era "apenas" o herói do mundial.
Em tese seria tudo tranquilo porque o Maurício é um cara que consegue ficar no ar dois dias seguidos. Sem contar que era conhecido de todos os personagens da festa e eles, naturalmente, apareceriam para as entrevistas. Seria uma aula prática e meu trabalho mais difícil seria só levar o Renato até o local do nosso vivo. Isso se ele aparecesse na festa, óbvio.
Fim de tarde cinematográfico ali no Parcão, Maurício posicionado, o telefone dele toca e a história começa a mudar. Ele atende, faz uma leve cara de espanto, desliga e se aproxima de mim:
— Marquinho, não sei o que aconteceu no Morro, mas eu vou ter que subir pra apresentar o programa lá do estúdio. O microfone é teu!
— Sério?
— Sim, a Gretchen disse que você vai fazer as entradas ao vivo. Boa sorte! Não te mixa!
A Gretchen Hiltz era a editora do programa. Ela também tinha feito o projeto Caras Novas e sempre que aparecia algo mais simples pra gravar, dizia a mesma coisa:
— Vai lá e grava. Aproveita que a chefia só vai ver no ar...
O Projeto Caras Novas era uma iniciativa sensacional da RBS destinada aos estudantes de jornalismo recém-formados. Depois de um processo de seleção muito difícil, os poucos aprovados passavam seis meses dentro da TV aprendendo tudo. Meu estágio foi no Esporte e assim que o curso terminou fiquei trabalhando na editoria. O Maurício chegou há tempo, o programa começou e ele me chamou no Veneza. É claro que eu não lembro de quase nada. Só o que me lembro bem é da entrevista com o Valdir Espinosa, o técnico do Grêmio na conquista do mundial.
Espinosa era um cara iluminado, simpático e gentil. Ele não sabia, mas sentia que eu era muito novo no ofício. Talvez por isso, depois que perguntei como ele tinha feito pra estudar o adversário num tempo que não existia internet, muito menos a transmissão de jogos internacionais no Brasil, foi carinhoso e elogiou a pergunta.
Técnicos não viram técnicos por acaso. Eles sabem melhorar as pessoas. O Espinosa me ajudou naquela hora e tive a chance de contar isso pra ele muitos anos depois, num café, na padaria da Globo, em São Paulo. Ele ouviu tudo e brincou:
— Acho que meu elogio tinha fundamento, né?
Eu acredito que a entrada ao vivo é um dom e naquela noite comecei a descobrir o meu. Porque não teve suor, nem perna tremendo. E se teve gaguejada não foi capaz de causar turbulência no meu primeiro voo.
Quando cheguei em casa a alegria dos meus pais era a prova que algo tinha mudado na minha vida. Eles tinham visto tudo ao vivo e queriam saber os detalhes. Contei e contei de novo com o maior prazer. Ouvi deles que pessoas ligaram pra dizer que estavam vendo o Marquinho na TV. Depois que a adrenalina baixou, já deitado e ainda desfrutando tudo o que se passou, me veio a grande certeza pro resto da minha vida: hoje eu acordei produtor, mas vou dormir repórter.
E o Renato? O Renato não apareceu na festa.