
— Às vezes eu penso em desistir. É difícil estar sozinha, ter que trabalhar e estudar, cuidar da casa. Mas eu cheguei até aqui sozinha e estou orgulhosa disso. Pretendo terminar a graduação, fazer mestrado e doutorado e, quem sabe, no futuro, talvez eu seja a pessoa que vai mudar a política do meu país.
O relato é de Rood Marline Joseph, haitiana de 24 anos que estuda Relações Internacionais (RI) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela está entre os 50 alunos refugiados que estudam na instituição. Em meio à crise política no Haiti, que levou a uma guerra civil, Rood deixou o país em 2019 para concluir os estudos e realizar o sonho de ser médica.
À época, sua mãe e irmã estavam refugiadas no Brasil. Com isso, elas ficaram juntas no Rio Grande do Sul. Rood conseguiu uma vaga em um colégio estadual para cursar o último ano do Ensino Médio em 2020, no início da pandemia, e passou um ano tendo aulas remotas. Nesse período, ela trabalhou na Associação de Integração Social (Ainteso), entidade que reúne haitianos que vivem em Porto Alegre.
Atuando na defesa dos direitos de migrantes e refugiados, ela percebeu que não queria mais cursar Medicina – depois de concluir a trajetória escolar, ela foi em busca do diploma de Relações Internacionais. Assim que descobriu o edital para ingresso de refugiados em cursos de graduação da UFRGS, Rood foi atrás de uma vaga.
Eu acho a cultura brasileira muito bonita, e eu quero conhecer mais. E para conhecer, tenho que me integrar na sociedade brasileira. E eu também tenho uma cultura muito bonita, que eu também quero compartilhar.
ROOD MARLINE JOSEPH
Estudante de RI
Ela precisou esperar mais um ano porque ainda não tinha o Celpe-Bras, certificado de proficiência em português exigido de estudantes estrangeiros. Por isso, só ingressou na universidade em 2023. Desde então, ela mora sozinha em Novo Hamburgo, uma vez que a mãe e a irmã decidiram mudar para os Estados Unidos.
Ela conta que uma das principais dificuldades na faculdade é a falta de interação social com os colegas, e que se sente solitária.
— Eu acho a cultura brasileira muito bonita, e eu quero conhecer mais. E para conhecer, tenho que me integrar na sociedade brasileira. E eu também tenho uma cultura muito bonita, que eu também quero compartilhar. Ser uma estudante de RI também é ter uma ideologia própria sobre o mundo. Eu quero compartilhar isso também com os colegas, e saber as ideologias deles também — relata a jovem, que tem planos de se qualificar cada vez mais para realizar o sonho de ser diplomata.
Aminata Sanha, 26 anos, também corre atrás do primeiro diploma – a estudante de Guiné-Bissau mora em Porto Alegre e cursa Ciências Econômicas na UFRGS. Ela também ingressou na instituição por meio do edital voltado a refugiados.
A jovem atua como empreendedora e trancista, com um estúdio de beleza no Centro Histórico, que administra junto da irmã. Aminata vive com os pais e a irmã no Brasil há anos, desde 2016. A família veio de Guiné-Bissau em busca de melhores condições de vida. Ela relata que a educação é muito valorizada pelo pai, e que decidiu cursar Economia influenciada por ele.
— Tenho bastante dificuldade, principalmente com os cálculos. Mas tenho o sonho de me formar. Acredito que com a minha fé e meu esforço vou conseguir — conta.
Em busca de perspectivas de futuro
O edital para refugiados da UFRGS também permitiu um recomeço para Lorena Garcia de Colmenarez, 50 anos, que ingressou em Psicologia em 2023. Após anos como professora de educação especial em escolas públicas, ela precisou deixar a Venezuela em 2017. O motivo foi a fome, em meio à crise humanitária no país.
— A gente ia trabalhar sem comer. A gente voltava para casa sem comer. Era muito complicado deixar meus filhos assim. Era uma situação de zero alimento, não era pouco alimento, era alimento zero. A cada 15 dias, a gente podia comprar comida que durava para dois dias. Foi uma situação muito difícil — conta.
Lorena morou em Boa Vista (Roraima) enquanto providenciava a documentação para permanecer no país. Ela chegou a trabalhar como doméstica e vendendo alimentos nas ruas para se sustentar. Em 2018, conseguiu trazer os filhos ao Brasil, e a família foi morar em Cachoeirinha, acolhidos por uma igreja.
Ela chegou a fazer um curso tecnólogo em Recursos Humanos, que a ajudou para conseguir trabalho. Assim que descobriu o edital da UFRGS, foi atrás de uma vaga em Psicologia para se qualificar e conseguir melhor recolocação no mercado de trabalho.
Hoje, Lorena está no 4º semestre e é pesquisadora na área de migração, conduzindo junto à universidade um estudo sobre saúde mental e qualidade de vida de mulheres imigrantes. Ela conta que sente falta da terra natal, e que não teria deixado a Venezuela se não fosse por necessidade extrema.

Desafios e avanços
Diversos desafios ainda persistem na rotina de pessoas refugiadas e migrantes no Brasil. Segundo dados do Boletim de Saúde do Trabalhador Migrante, do governo do Estado, de 2024, o RS é lar para 127,3 mil migrantes, refugiados e apátridas.
A falta de informações assertivas é uma dificuldade, também por conta de barreiras linguísticas e culturais. Infelizmente, ainda temos que combater e superar também a xenofobia e o racismo.
MARIO FUENTES BARBA
Coordenador dos Povos Indígenas, Imigrantes, Refugiados e Direitos Difusos da prefeitura de Porto Alegre
Conforme levantamento de 2021 da Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 5% dos refugiados no mundo estavam matriculados no Ensino Superior. A meta da ONU é que 15% dos refugiados tenham acesso à etapa até 2030. Um dos obstáculos é a falta de informações para essa população, segundo o coordenador dos Povos Indígenas, Imigrantes, Refugiados e Direitos Difusos da prefeitura de Porto Alegre, Mario Fuentes Barba.
— A falta de informações assertivas é uma dificuldade, também por conta de barreiras linguísticas e culturais. Infelizmente, ainda temos que combater e superar também a xenofobia e o racismo. Todas essas questões geram frustrações para os migrantes e refugiados — explica.
Conforme Fuentes, isso pode dificultar o acesso ao ensino e a oportunidades de trabalho. O próprio termo “refúgio” ainda é cercado de estigmas, o que pode ser mais um agravante.
— Os refugiados vêm para o Brasil porque já não há condições de permanecer no país de origem. E, muitas vezes, não têm condições de retornar. É uma violação generalizada de direitos humanos. Muitas vezes, envolve perseguições, seja por ordem religiosa, étnica ou política — destaca Fuentes, que também é assessor para assuntos de Migração e Povos Indígenas do Núcleo de Estudos em Cultura Afro-Brasileira e Indígena da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Entre as possíveis soluções para o problema, ele destaca a necessidade de integrar as pessoas refugiadas à sociedade, gerando oportunidades de estudo e de trabalho, em vez de reforçar estigmas e marginalizar essa população. Uma das conquistas foi a aprovação da resolução nº 50, do Conselho Nacional de Imigração.
Publicada no ano passado, a medida permite que imigrantes graduados ou pós-graduados em instituições brasileiras possam solicitar autorização de residência para trabalho. Ou seja, após obter o diploma, os estudantes poderão trabalhar legalmente no Brasil, facilitando a inserção no mercado de trabalho formal.
Apoio das universidades
Há grupos, organizações e projetos que contribuem para ampliar o acesso a oportunidades, na integração e adaptação de comunidades migrantes no Rio Grande do Sul. Um exemplo é o Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire), da UFRGS, que oferta serviços gratuitos de assessoria jurídica e psicossocial a imigrantes, refugiados e solicitantes de refúgio.
Já a Universidade Feevale conduz o projeto de extensão Centro de Educação em Direitos Humanos (Ceduca DH). A iniciativa existe desde 2016 e busca apoiar a comunidade de migrantes do Vale do Sinos em diversas frentes – são realizadas atividades e serviços gratuitos, incluindo oficinas, cursos, mutirões, acompanhamento jurídico e psicológico para facilitar a vida dessas pessoas.
Nós temos o papel de promover a formação, de debater, de se colocar no lugar do outro e pensar essas discussões em diferentes espaços, seja públicos, empresariais, de atendimento junto ao poder público.
MÁRCIA BLANCO CARDOSO
Coordenadora do Ceduca DH da Universidade Feevale
Já foram atendidos pelo grupo haitianos, venezuelanos, palestinos, russos, filipinos, turcos, argentinos, senegaleses, egípcios e tunisianos em situação de refúgio, entre outros. A cada ano, são atendidas dezenas de pessoas, com turmas de no máximo 20.
— Enquanto universidade, nós temos o papel de promover a formação, de debater, de se colocar no lugar do outro e pensar essas discussões em diferentes espaços, seja públicos, empresariais, de atendimento junto ao poder público. Para que a gente consiga sempre melhorar, e que os migrantes vejam no nosso país uma oportunidade crescer — afirma a coordenadora do Ceduca DH, Márcia Blanco Cardoso.
A professora destaca que o grupo serve como suporte para as mais diversas finalidades, com voluntários de diversos cursos de graduação. Quem participa, acaba criando um vínculo com os estrangeiros.
— Temos um grupo de WhatsApp onde compartilhamos todas as informações, divulgamos vagas de emprego, oportunidades. Tem mais de 70 pessoas. A gente acaba criando um laço muito forte com as pessoas — conta.