É tarde de quarta-feira em Maceió, a brisa vinda do mar azulado sopra leve. O gaúcho Léo Gamalho aproveita a folga rara como torcedor do caçula Davi, sete anos. O guri mostra seu faro de gol numa escolinha conveniada do Santos na capital alagoana. No café, havia convocado o pai para que assistisse ao treino. Afinal, não é sempre que a agenda do goleador do Brasil, com 16 gols, coincide com a do herdeiro.
No fundo, Léo estava exercitando uma rotina que mudou sua vida. Em cerca de 30 minutos de conversa franca, sem negaceios, o centroavante revela o mergulho interior que o mudou como jogador e homem. O jovem com potencial de craque e desleixo com as obrigações de atleta cedeu lugar a um sujeito de maturidade assombrosa e extrema consciência profissional.
Foram necessários alguns anos para que mudasse a imagem. Hoje, o marido da Marja, pai da Clara, nascida em Portugal há 12 anos, e do Davi é também o centroavante que carrega a esperanças da fiel torcida do CRB. À base de gols, se reinventou como jogador e virou ídolo no Nordeste. Tanto que, em Alagoas, virou Léo Gamalhovic. Confira o nosso papo:
Aos 34 anos, você considera que vive o seu melhor momento?
Comecei no futebol aos 12 anos, no Grêmio. Joguei no River Plate, dois anos e pouco, no Inter, onde me profissionalizei, aos 19 anos. Tinha uma base mental diferente. Amadureci como pessoa, como homem. Vejo, hoje, que o trabalho tem um poder muito grande, que preciso me esforçar mais, ter foco na alimentação, no corpo. Não tinha isso lá no início. Demorei para perceber que precisava ter esse cuidado total. Hoje, você já vê a garotada consciente disso, se cuidando. Muitos já têm preparador particular, nutricionista. Me queimei no começo da carreira por não me cuidar. De uns anos para cá, me transformei como jogador.
Quando foi essa guinada?
Foi em 2013. Fiquei mais decidido a ter essa mudança. Cheguei a um momento da vida em que notei precisar de algo a mais para ser jogador, que precisava tomar cuidados maiores, fazer coisas diferentes. Comecei a me cuidar. Custou alguns anos da minha vida apagar a imagem errada que criei.
Mas o que você fazia? Era balada? Era postura inadequada para um atleta?
Eu não tinha cuidados. Era relapso, não cuidava da alimentação, era um jogador bem pesado para a idade. Tinha problema com noite e bebida. Não que fosse coisa exacerbada (com álcool), longe disso. Mas era algo que hoje não se admite mais (para um atleta). Mudei completamente. Hoje sou mais família. Passei alguns anos para mudar minha imagem. Joguei um tempo fora do Brasil e fui voltar só em 2011. De 2005 a 2007, por exemplo, fiquei praticamente sem atuar. Hoje, está tudo diferente, já sou consolidado, consegui mostrar a transformação que tive no meu extracampo.
Eu era setorista do Inter em 2005 e me lembro, em treinos, de o Clemer, numa postura até paternal, te estimular e te cobrar nos treinos.
Quando eu subi, o Clemer concentrava sozinho. Daí, fiquei como parceiro de quarto com ele. O Clemer sempre me dava muitos toques. Dizia que eu não usufruía do potencial que tinha. Uma vez, no vestiário, o Fernandão me chamou. "Léo, acho que você deve se concentrar mais no teu trabalho, na tua qualidade. Olha aquele jogador ali que está no grupo. Ele tem menos qualidade, mas você não consegue ter o sucesso que ele está tendo. Vejo você com mais potencial do que isso (que está fazendo) e vejo você desperdiçá-lo nas coisas que faz." Pena que eu não tinha maturidade na época para seguir o conselho dele.
Você disse que ficou dois anos sem atuar. O que houve?
Logo que subi no profissional do Inter, em 2005, com o Muricy, passei por cirurgia no púbis. Isso também complicou bastante. Fiz um campeonato pelo sub-23 do Inter, na Itália, em que o ataque era eu e o Luiz Adriano. Foi a única vez em que consegui jogar naquele ano. Em 2007, fui para o Botafogo, mas pouco atuei. Passei três meses no América de Cali, depois fui para Portugal, onde atuei por um ano e meio, de lá para a China. Foram dois anos lá. Só em 2011 voltei a jogar no Brasil (Grêmio Barueri).
Você, portanto, poderia ter sido parte do grupo da Libertadores e do Mundial do Inter?
Estava no grupo até meados de abril. Treinava com o grupo principal, mas não ia para jogo. Surgiu a chance de atuar no Botafogo. O Inter me liberou. Mas lá no Rio a dupla de ataque era Dodô e Christian. Acabei quase nem jogando. Fui começar a ter sequência em Portugal. Acabei como goleador da Taça de Portugal, me destaquei e recebi oferta do futebol chinês.
Você foi um dos desbravadores do mercado chinês, portanto?
(Risos) Sim, a China não era nada perto do que é hoje. Fui pela questão financeira. Minha filha, Clara, tinha recém nascida, em Portugal. Estava numa idade em que se busca a independência. Por isso, foi legal essa aventura.
Você teve uma parte da base no River. Algum jogador da sua época conseguiu destaque?
Minha ida para o River teve disputa judicial com o Grêmio. Por isso, só atuava em amistosos. Jogava com o Falcão García no ataque. O meia do nosso time era o Conca. Houve amistosos em que jogava o Higuaín. Ele era mais novo, atuava como um camisa 10.
Falando deste momento no CRB. O nordestino reverencia centroavante, os times da região sempre têm um nove de referência. Você também percebe que conquistou um grande espaço nesse mercado?
Até é algo que me surpreendeu. O torcedor aqui é apaixonado, até essa questão da pandemia, marcava presença sempre no estádio. Por isso tem essa afeição pelo centroavante, pelo cara que faz o gol. Tive boas passagens por vários clubes nordestinos (ASA, Ceará, Bahia, Santa Cruz, ABC, América-RN). Ajuda com que o torcedor cria uma imagem. Aqui, gostam da questão do apelido, vivenciam essa idolatria mais do que em outros Estados. Como faz calor o ano todo, não acontece como aí no Sul, em que o frio afasta a pessoa do estádio. O povo aqui tem esse calor humano bem maior. Sou muito bem tratado, adoro o pessoal daqui. Sou muito grato pela forma como eu e minha família fomos recebidos.
Como surgiu a história do Léo Gamalhovic? Você vê semelhanças com o Ibra?
(Risos) Cada dia surge uma nova. Sou centroavante, ele é o cara que joga na mesma posição, prende o cabelo também. Quando jogava de cabelo solto, me diziam que parecia com tal jogador. Aqui tem muito de usar essa comparação com quem está por cima na Europa. Já queria ter cortado o cabelo em outras oportunidades.
Mas, no Inter, me lembro de você subir para o profissional já de cabelo curto.
Quando cheguei ao profissional do Inter me chamavam de "Fernandão". Chamavam tanto que acabei raspando a cabeça. Até teve uma história engraçada. O Muricy me chamou de Fernandão, e eu disse para ele que meu nome era Léo Gamalho. Tomei uma dura dele. "Pô, mas todo mundo te chama de Fernandão!".
Mas, para efeito de marketing, valem essas comparações, não?
Nessa questão de marketing, sou muito ruim (risos). Não tenho assessoria, minhas redes sociais não são muito ativas. Na verdade, sempre usei cabelo grande, desde criança. Quis cortar recentemente, mas minha mulher (Marja) pediu para que deixasse assim. Ela prefere desse jeito, e eu atendo, né?
Você hoje é o artilheiro do Brasil. É o seu melhor ano?
Em 2014, no Santa Cruz, fiz 32 gols, fui um dos artilheiros da Copa do Brasil e do Pernambucano. Só fiquei atrás do Magno Alves na temporada. Tem sido um ano maravilhoso, fomos campeões estaduais, levamos o CRB a uma classificação inédita à quarta fase da Copa do Brasil. O clube ambiciona a Série A, estamos trabalhando firmes para isso.
Quais os planos para o futuro? Você deve ter recebido muitas ofertas, já que todos querem centroavante.
Isso eu deixo para o (empresário Jorge) Machado cuidar. Procuro me concentrar no trabalho apenas. Sempre me perguntam quando penso em largar o futebol. Falo o mesmo sempre, que estou à espera do meu melhor momento, essa é a minha batalha diária. Meus filhos me pedem para que eu não largue o futebol, querem me ver em campo. Hoje mesmo o meu caçula, o Davi, de sete anos me disse que não aceita minha aposentadoria. Não tenho esse plano. Joguei na Coreia do Sul em 2018 e passei momento particular bem difícil, de saúde na família. Quase larguei o futebol. Pensei em desistir, não tinha desejo de estar em campo. Superado aquilo, estou com mais vontade, quero coisas maiores. Essa é a minha fome, é minha busca.