O padre suíço Theodor Amstad, fundador do Sicredi, descreveu a rotina dos moradores de Porto Alegre em 1917. O texto em alemão foi publicado, no ano seguinte, em sete páginas do anuário Familienfreund. A escritora Helena Seger traduziu o material guardado pelo seu pai, Walter Seger.
Por faixa horária, o padre relatou o que viu na cidade, que estava com quase 180 mil habitantes. Amstad percorreu as 12 linhas de bondes em 7 de abril de 1917, um Sábado de Aleluia. No trajeto, viu apenas 16 casas em construção ou reforma, "um indicador da crise comercial". A Primeira Guerra Mundial estava em andamento na Europa.
Na segunda-feira seguinte, Amstad saiu do Moinhos de Vento em direção ao Centro. Entre 5h30 e 6h45, viu três automóveis, duas carruagens e os primeiros bondes, além de alguns carros de leite, carregadores de carne e poucos pedestres.
No meio da madrugada, produtores de leite do Passo D´Areia, Navegantes, Teresópolis, Glória e Tristeza começavam o trabalho para atender os clientes a tempo. Os padeiros também madrugavam. O padre questionou por que o pão não poderia ficar pronto já na noite anterior para os primeiros fregueses da manhã.
Os primeiros que chamavam atenção nas ruas eram os carreteiros. O Mercado Público era o principal ponto de abastecimento da cidade, concentrando carretas carregadas com alimentos. No entorno, ficavam vendedores ambulantes de frutas, verduras e outros produtos. Às 8h, mesmo durante o inverno, "toda a enorme máquina de trabalho da cidade já está em pleno funcionamento".
Em todas as grandes lojas, fábricas, oficinas e escritórios, o intervalo para almoço durava entre uma hora e meia e duas horas e meia. Na Rua dos Andradas, à tarde, circulavam "mulheres elegantes" e "moços bonitos". Os cinemas eram a principal diversão à noite.
O padre observou que "o descanso noturno nas ruas de Porto Alegre começa cedo". Na viagem de bonde entre 21h e 22h, viu poucos pedestres. A vida social só continuava nos "salões de reunião e nas tabernas". O texto termina com uma conclusão: "em tempos normais, Porto Alegre, apesar da grande mistura de nacionalidades, é uma cidade tranquila e pacífica".
Abaixo, leia trechos do texto traduzido por Helena Seger.
Um dia nas ruas de Porto Alegre
5h-6h: Porto Alegre ainda dorme
Como complemento da viagem de bonde no Sábado de Aleluia, realizamos na segunda-feira de Páscoa uma caminhada matinal, das 5h30 às 6h45, da Estação de Água (Moinhos de Vento) até o Centro da cidade, e o que vimos foi o seguinte: 3 automóveis com atrasados visitantes da Páscoa; 2 carruagens com viajantes, provavelmente indo para o porto; os primeiros bondes, circulando ainda sem passageiros; alguns carros de leite; carregadores de carne; no máximo, uma dúzia de pedestres e alguns policiais. Das casas, estavam iluminadas: 3 açougues, 3 cafés, 1 mercearia; das residências particulares, apenas 6 tinham luzes acesas, sendo a maioria nas áreas de serviço. Aparentemente, os habitantes da nossa cidade desconhecem o ditado: "A manhã tem ouro na boca!".
No entanto, cometemos uma injustiça, se designarmos todos os moradores da cidade e arredores como dorminhocos. Pois, enquanto a maioria ainda desfruta do doce descanso, há algumas categorias que precisam sacrificar grande parte da noite para atender seus concidadãos. Esses incluem, além dos guardas-noturnos, da polícia, dos vendedores de leite, os ajudantes de padeiros. Já às 2 ou 3 horas da manhã, os fazendeiros do Passo da Areia, Navegantes, Teresópolis, Glória e até Tristeza iniciam seu trabalho para atender os clientes a tempo. Os padeiros, porém, estão em situação ainda pior. Por causa de uma mania culinária ridícula, eles precisam passar a maior parte da noite trabalhando. Não conseguimos compreender qual seria tão grande diferença, se o pão saísse do forno às 12 horas da noite, em vez das 3 horas da manhã; os pães da meia-noite ainda seriam suficientemente frescos para agradar a um paladar exigente.
6h–7h: Porto Alegre desperta e se abastece
Quando amanhece, a cidade começa seu primeiro trabalho: o abastecimento para o dia. A questão da alimentação permanece a mesma, sendo a primeira a ter que ser resolvida. Como o Mercado Público é o principal ponto de abastecimento da cidade, começamos nossa visita por lá. A organização do mercado parece-nos ser bastante prática. O interior está dividido em 48 grandes bancas de vendas, organizadas em dois corredores cruzados, onde quase exclusivamente são vendidos alimentos.
Quando o dia começa a clarear, entre 6 e 7 horas no inverno, e no verão já entre 5 e 6 horas, uma grande quantidade de carretas carregadas com alimentos reúne-se ao redor do Mercado Público e na praça adjacente. Contamos 50 carroças com verduras. Além disso, chegam as com frutas, carnes, queijo, manteiga, conservas e aves - com as quais as bancas de vendas completam seu estoque diário. Para o mercado de peixes, as canoas trazem o suprimento necessário das ilhas e da Ponta do Peixe na Tristeza. Em épocas favoráveis de pesca, os molhes de pedra não conseguem conter a quantidade de peixes que acabam sendo empilhados no pavimento.
Em pouco tempo, o conteúdo dos carros de provisões é distribuído para as bancas do Mercado Público, para os carrinhos de alimentos mais leves e para as cestas de numerosos pequenos comerciantes. A isso somam-se incansáveis vendedores de bilhetes, que regularmente tentam vender o último pedaço a qualquer um que encontrem. Finalmente, observamos os vendedores de jornais, dignos companheiros dos primeiros! Acima de tudo, não se deve acreditar em seus apelos de venda, caso contrário, somos facilmente enganados; pois com eles, também, é "Muito barulho e pouca lã!".
Entre isso, há o tumulto, o falatório e os gritos dos vendedores ambulantes que oferecem utensílios de metal, guarda-chuvas, fazendas (tecidos), pequenos artigos, refrescos e, mais recentemente, até móveis leves e suportes para compra.
7h–8h: Porto Alegre começa a trabalhar
Os primeiros que chamam nossa atenção são os carreteiros. Eles vêm de seus pontos de partida de São João, Mont´Serrat, da Colônia Africana, do Campo da Redenção e de lugares ainda mais distantes. São pequenas carroças abertas, puxadas por um ou dois animais, destinadas ao transporte de terra, material de construção, lenha; depois, vêm as grandes carroças cobertas, geralmente puxadas por três animais, usadas para o transporte de mercadorias, principalmente carroças para mudanças ou transporte de móveis.
Depois dos carreteiros, vêm os trabalhadores e os comerciantes. O principal fluxo segue novamente pelo Caminho Novo, entrando no bairro comercial da cidade e saindo em direção às fábricas do Navegantes. Embora o bonde das 7 horas do Floresta e Caminho Novo esteja geralmente lotado, o número de pedestres ainda é de 3 a 4 vezes maior. Contagens realizadas entre 8 e 9 horas mostraram que, em relação a 40 e 50 que viajavam de bonde, havia entre 150 a 200 pedestres. A passagem de bonde é cara demais para o trabalhador comum.
Além deste grande grupo que pela manhã se apressa de todas as partes para o trabalho físico, há também um número significativo de pedestres que se dirige para o trabalho intelectual. Estes incluem, em primeiro lugar, milhares de alunos e alunas, desde pequenos estudantes de 6 anos, até os universitários, com a única diferença de que os mais jovens são madrugadores, enquanto os senhores acadêmicos são dorminhocos.
8h–11h30: Porto Alegre no trabalho
Às 8h, mesmo durante o inverno, toda a enorme máquina de trabalho da cidade já está em pleno funcionamento. Embora o tráfego de pedestres nas ruas diminua um pouco, o tráfego de mercadorias e veículos aumenta consideravelmente.
Todos querem resolver seus negócios antes do fechamento: o carroceiro deseja entregar sua carga no destino, o funcionário quer pegar mais um pacote, o empregado precisa concluir sua tarefa, o comerciante deseja fechar um negócio - tudo isto, antes do almoço. Confesso que, muitas vezes, também pertenço a esse grupo de apressados.
11h30-13h: Porto Alegre se alimenta e descansa
Em todas as grandes lojas, fábricas, oficinas, escritórios e instalações industriais, agora há uma pausa para o almoço, que varia entre uma hora e meia e duas horas e meia. Na verdade, essa pausa deveria ser de 2 horas para todos.
Passando pelos restaurantes do Mercado Público e pelas ruas adjacentes durante esse período, podemos confirmar a veracidade do ditado: "quanto mais duro o trabalho, mais saborosa a comida". Lá estão sentados os carregadores negros, os carreteiros de cor, os lenhadores, saboreando seus pedaços de carne e toucinho, seus pratos de feijão com arroz, ou uma sopa que mistura todos os ingredientes, e desfrutam como se estivessem em um banquete real. Durante essa pausa, a vida nas ruas é a mais tranquila e agradável de todo dia. Apenas por volta da 1h (13h) é que a atividade recomeça.
13h-17h: Porto Alegre no trabalho da tarde
A vida nas ruas se desenvolve de forma semelhante à da manhã, mas os carrinhos ambulantes de alimentos desaparecem na sua maior parte. Em contrapartida, o transporte de mercadorias aumenta e atinge seu pico por volta das 17h.
Na Rua dos Andradas, à tarde, destaca-se especialmente a presença das mulheres elegantes.
17h–21h: Porto Alegre descansa e se diverte
O primeiro descanso é um passeio, mas não pela livre natureza de Deus, num parque, ou antes da cidade, em área aberta. Não, a juventude de Porto Alegre – "os moços bonitos" – rumam para as calçadas da Rua dos Andradas, entre a Praça da Alfândega e a Rua Bragança, de tal forma que as laterais da rua, de longe, parecem chapeuzinhos de palha em movimento.
Depois de ter e ser visto o tempo suficiente, com o cair da escuridão, as pessoas seguem para o cinema, pois nossa cidade, até mesmo nos subúrbios mais distantes, já conta com pelo menos uma dúzia de salas.
É por isso que, entre 8h (20h) e 9h (21h), os bondes ficam novamente lotados, muitas vezes transportando aqueles que de manhã os usaram para ir trabalhar na cidade, mas agora em direção aos cinemas.
21h-22h: Porto Alegre encerra o dia
Pelo que tivemos oportunidade de observar, parece que o descanso noturno nas ruas de Porto Alegre começa cedo. Nós retornamos de bonde entre 21h e 22h e notamos, naquela hora, poucos pedestres na rua. A maioria das lojas fecha cedo, e os moradores retiram-se mais cedo para suas residências particulares, onde frequentemente ainda dispersam grande parte da noite, o que acaba resultando em acordar tarde no dia seguinte. Somente nos salões de reunião e nas tabernas, a vida social continua por mais algum tempo. O que se lê nos jornais sobre brigas noturnas, disputas e esfaqueamentos, geralmente, acontece nos bares das periferias. No geral, pode-se dizer que, em tempos normais, Porto Alegre, apesar da grande mistura de nacionalidades, é uma cidade tranquila e pacífica, que faz juz ao seu nome de "porto alegre".