No esporte, em qualquer modalidade, além da clássica divisão entre protagonistas e coadjuvantes, há uma terceira categoria, habitada por uns poucos eleitos. São aqueles capazes de transformar o seu universo para sempre. O mundo ao redor passa a se dividir entre antes e depois. Trata-se de uma subdivisão do protagonismo, já que não existe visionário sem brilho. A ginástica artística nunca mais foi a mesma desde que aquela adolescente romena. Aos 14 anos, Nadia Comaneci arrebatou três ouros nos Jogos de Montreal, em 1976.
Até então, ninguém merecera nota 10 em uma modalidade na qual um imperceptível desequilíbrio já desconta algumas casas decimais na pontuação. Nadia Comaneci beijou a perfeição e recebeu nota máxima sete vezes. Antes de o norte-americano Richard Fosbury chegar ao topo do pódio no México, em 1968, os competidores do salto em altura tentavam ultrapassar o sarrafo de frente. Ele inaugurou uma nova técnica, pulando de costas. Na Olimpíada seguinte, em Munique, 13 dos 16 finalistas já tinham abraçado a nova técnica.
Criador – O mundo enlouqueceu quando a Copa de 1974, na Alemanha, globalizou o carrossel holandês com o qual o Ajax, anos antes, já hipnotizava adversários na Europa. Era o futebol total da seleção laranja. Todos cumpriam múltiplas funções e apareciam ao mesmo tempo em todos os lugares, resultado em uma maravilhosa loucura racional. O talento supremo será sempre do incomparável Pelé, mas ninguém pensou coletivamente uma partida de futebol como o temperamental Johan Cruyff, o regente daquela orquestra. Há outros revolucionários. Pense aí no seu para eu entrar direto em Valdir de Morais.
Valdir morreu há duas semanas, com 88 anos, na Porto Alegre onde nasceu, vitimado por falência múltipla dos órgãos, deixando esposa, dois filhos, dois netos e cinco bisnetos. No Brasil, ele foi marco divisório. No campo, fechando o gol, e fora dele, ao criar uma nova profissão: a do preparador de goleiros. Lá atrás, parecia luxo excêntrico. Hoje, todos os clubes têm o seu. Fale com qualquer goleiro, mesmo os desta geração, como Marcelo Grohe e Alisson, e a reverência será imediata. É só mencionar o nome: Valdir de Morais.
Quando encerrou a carreira após uma década no Palmeiras, montou no Parque Antártica a inédita escola de goleiros. Logo surge Emerson Leão, moldado por ele. Trabalhou com Marcos, Zetti e Rogério Ceni, todos campeões mundiais. Marcos, em 2002. Zetti e Ceni, no São Paulo. Mas nada disso teria acontecido sem aquelas anos de magia pura do Renner, campeão gaúcho invicto de 1954. Quem caía no alçapão do Quarto Distrito, o Waterloo da Sertório, estava miseravelmente condenado. Era uma sentença, válida não apenas para o Tiradentes, nome oficial do caldeirão, mas qualquer estádio.
Foram 18 vitórias e quatro empates, 66 gols pró e apenas 11 contra, o que fez de Valdir de Morais o goleiro menos vazado. Não haveria Palmeiras e nem Seleção, nem a paternidade da preparação de goleiros, sem o alcance e os matizes lendários do Renner, que se espalharam país afora. O meia Pedro, por exemplo, foi para o Fluminense, virou ator e ganhou prêmio em Cannes estrelando o filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, baseado na peça teatral de Vinícius de Moraes.
— Sempre bem colocado, não precisa do espalhafato. Apenas defendia, como se soubesse onde e como a bola viria — lembra Arnaldo da Costa Filho, 97 anos, médico do Renner em 1954, precursor da medicina esportiva gaúcha e mais ativo do que este cronista e você, leitor, juntos.
— Lembro de vê-lo, eu hipnotizado, treinando pênaltis com Ênio Andrade, após os treinos. Suspeito que tenha sido o primeiro treinador de goleiros do mundo — diz o dentista Sergio Bechelli, categoria mirim do Renner nos tempos dourados do esquadrão e dono de uma memória cuja riqueza em detalhes e datas fazem dele um HD externo ambulante.
Daquele esquadrão, restava apenas o seu Valdir e sua canhota cirúrgica (sim, ele já jogava muito com os pés na primeira metade do século passado) entre nós. Em algum lugar melhor do que esta confusão na qual o Brasil foi se meter, Bonzo, Ênio Rodrigues, Orlando, Paulistinha, Leo, Ênio Andrade, Pedrinho, Breno, Juarez e Joeci devem tê-lo recebido de pé, com salva de palmas. Poucos mudam o mundo no esporte.
Valdir era um deles.