Poucos personagens de uma rivalidade centenária como é o Gre-Nal se enquadram tão sob medida para o que estará em jogo neste domingo, na Arena. Precisamos de paz, de tolerância, de gentileza, da consciência de que adversário não é inimigo. Ser colorado ou gremista não é acusação. É uma preferência. E, não raro, por razões aleatórias: o pai, o padrinho, um jogo, alguma implicância na escola, a época mais vencedora de um sobre outro. Ou nada disso. Ou tudo isso.
O fato é que esta noção de acusar, como se fosse crime vestir vermelho ou azul, está se disseminando. Trata-se de uma completa deformação do esporte, dos conceitos básicos de democracia e, especialmente, da civilidade. É aí que entra a #GreNalDeTodos. É aí que entra um exemplo prático. É aí que entra Mauro Geraldo Galvão.
Mauro Galvão teve uma carreira longeva, repleta de Gre-Nais pegados e tensos, mas sem um episódio sequer que pudesse ser considerado ofensivo, deselegante ou desrespeitoso. Sem provocações, sem recadinhos, sem brigas ou respostas para agradar a torcida e ficar de bem com a galera, aceitando todo tipo de crítica e pergunta dos jornalistas com o mesmo tom suave na voz.
Sua linha sempre foi a da tolerância. Talvez tenha explodido alguma vez. Não lembro. Galvão era zagueiro, e não monge budista. O certo é que a paz esteve na gênese de suas passagens por Grêmio e Inter, e por isso é tratado oficialmente como ídolo pelos dois lados, em vermelho e azul.
Há quem chame este tipo de comportamento de nutella ou incompatível com garra, disseminando a cultura da violência e incutindo nos mais jovens a ideia perversa de que vitória e escrúpulos não podem conviver juntos. Por isso é fundamental uma rápida passagem pela galeria de títulos deste gaúcho de Porto Alegre.
Não se trata de um aqui, outro ali. São 22, somando Seleção. Excluirei todos os estaduais da carreira por falta de espaço. Fico nos quatro pelo Inter e nos dois pelo Grêmio. É ano de Mundial e ele jogou o de 1990, na Itália. Tem uma Copa América no currículo. Mas voltemos ao princípio.
Galvão era um imberbe adolescente de 17 anos quando Falcão o viu treinando na base do Inter e foi correndo contar a novidade a Ênio Andrade. Havia, nos gramados suplementares do próprio Beira-Rio, um zagueiro que se recusava a dar bico e acertava passes sem deixar de ser o que de fato sempre foi: um homem de defesa capaz de impedir gols dos atacantes. O resto é pura história: o Brasileirão invicto de 1979, façanha com grande chance de ser eterna, até pela fórmula de pontos corridos em vigência.
O tempo passou. Galvão ainda conquistou a medalha de prata em Los Angeles, quando o Inter representou o Brasil na Olimpíada de 1984. Saiu para o Bangu, à época um clube que tentava se transformar numa potência carioca. De Moça Bonita para General Severiano. Depois de tirar o Botafogo da fila estadual de 21 anos, jogou seis temporadas no Lugano, da Suíça.
Como se sabe, a Suíça é a pátria do chocolate. Mas Galvão não comeu uma barra sequer enquanto lá esteve. Determinado a cuidar do corpo, regrava a alimentação. Descobri este rigor todo em sua segunda passagem pelo Grêmio, em 2001. Ali ele já tinha 39 anos.
Nós, repórteres, procurávamos explicações para uma carreira tão extensa em alto nível – ele se aposentaria no ano seguinte ao do título da Copa do Brasil, sob o comando de Tite, ao final da participação do Grêmio na Libertadores. Perguntei, na sala vip de um aeroporto, porque era o único que não tinha provado uma única bolachinha recheada servida. Umazinha só. Uma mordida, talvez. Ele disse:
– A gente joga com a cabeça e o corpo.
Sua carreira longeva e vencedora só em grandes clubes se explica muito por isso, além do talento e do biotipo que, apesar da aparência frágil, suportava todo o tipo de tranco. Esta capacidade, confesso, nunca entendi como se dava, do ponto de vista da física. Galvão não é tão alto, com seu 1m80cm. Expus minha incredulidade essa semana, quando o reencontrei no Sala de Redação. Ele sorriu:
– Quem disse que os magros não têm força?
Não se pode duvidar. Não no seu caso, ao menos. Se não tivesse força, jamais teria marcado Renato Portaluppi. Sim, aquele Flamengo vencido pelo Botafogo por 1 a 0, gol de Maurício, na final do Campeonato Carioca de 1989, tinha não só Renato para fazer gols, mas ainda Zico e Bebeto. Galvão se mantém magérrimo até hoje, aos 56 anos. Segue sem tomar refri. Não gosta. Mas libera uma barrinha de chocolate, vez por outra.
A propósito da Suíça, foi de lá que o Grêmio o buscou para sua primeira vez, já com 35 anos. Velho? Deu tempo de ser campeão brasileiro em 1996, jogando a final contra a Portuguesa e travando Alex Alves, um velocista de 21 anos que, à época, encantava o país. No ano seguinte, Copa do Brasil. E Brasileirão e Libertadores, pelo Vasco, até encerrar a carreira no Olímpico.
Galvão lutou e ganhou Gre-Nais dos dois lados, mas nunca sem lisura e respeito. Se ele conseguiu, na eletricidade e na pressão do campo, apesar de já naquela época uns e outros tentarem diminuí-lo por essa linha pacífica, não pode ser tão difícil assim torcer em paz:
— É preciso um olhar mais racional diante de tanta provocação.
Podemos ter um Gre-Nal sem agressões físicas só pela cor clubística. Não é possível que de novo tenhamos depredações de cadeiras. Não dá mais para admitir ofensas de gênero como as que se repetem contra mulheres. O estádio não é o coliseu romano. Não é vale-tudo. As pessoas não podem ver o futebol como a válvula de escape permitida para expulsar demônios reprimidos em sua vida de cidadão que cumpre regras em sociedade.
Esse é o ponto. A paixão não pode servir de desculpa para tudo. Que seja um bom Gre-Nal. Um Gre-Nal de todos e para todos.