
Muito antes de a série Black Mirror virar metáfora para os nossos espantos tecnológicos cotidianos (quando alguém diz “muito black mirror!” em geral está se referindo a algo que, até ontem, soava como ficção científica) ou de a internet se tornar uma espécie de prótese acoplada aos nossos corpos e mentes, o diretor canadense David Cronenberg já explorava o lado mais sombrio da relação simbiótica entre humanos e máquinas.
São dele filmes como Scanners - Sua Mente Pode Destruir (1981), em que dois irmãos ganham a capacidade de ler e explodir mentes graças a um experimento científico, Videodrome (1983), em que a televisão é usada para alterar permanentemente a percepção dos espectadores, A Mosca (1983), refilmagem de um clássico do terror dos anos 1950 em que um cientista tem o seu DNA embaralhado com o de um inseto, Crash (1996), sobre a inusitada correlação entre acidentes de automóvel e fantasias sexuais, e o recente Crimes do Futuro (2022), sobre um artista que transforma a remoção de seus órgãos em espetáculo.
Em O Senhor dos Mortos (2024), que estreou há duas semanas aqui nos Estados Unidos, Cronenberg leva sua investigação sobre a invasão dos corpos pela tecnologia até a fronteira final: o túmulo. No filme, Karsh (Vincent Cassel) é um empresário inconformado com a perda recente da mulher, Becca (Diane Kruger), vítima de uma doença longa e debilitante (e em sendo um legítimo Cronenberg, não poderiam faltar os membros mutilados e as cicatrizes). Para ficar para sempre perto da amada, Karsh não apenas compra um cemitério como desenvolve uma janela indiscreta para o além, GraveTech, tecnologia que permite que as famílias acompanhem a decomposição dos seres amados, em tempo real, por meio de um aplicativo no celular.
Cronenberg, 82 anos, ficou viúvo em 2017, depois de 38 anos de casamento. De certa forma, parece ter espelhado sua dor no luto do personagem, com a vantagem de que, no cinema, sempre é possível tramar o destino de forma a encaminhá-lo para algo parecido com um final feliz. Como em alguns dos melhores episódios de Black Mirror (na última temporada, gostei de Eulogia e Pessoas Comuns), os filmes de Cronenberg refletem sentimentos ambivalentes em relação à tecnologia. Por um lado, temos medo daquilo que nos controla, escraviza, desumaniza, substitui. Por outro, mantemos a esperança, demasiado humana, de que algumas de nossas dores mais profundas um dia encontrarão alívio naquilo que ainda não foi inventado.