Um conto sempre narra duas histórias: uma evidente e outra secreta. A tese, desenvolvida pelo escritor argentino Ricardo Piglia no livro Formas Breves (1999), funciona lindamente para a literatura, mas não só. Assistindo a um filme ou a uma série de TV, sempre volto à formulação de Piglia e me pego perguntando que história está sendo contada nas entrelinhas. Em muitos casos, é ali, no não dito, que se esconde boa parte daquilo que nos perturba ou encanta em uma narrativa. Hemingway comparava o conto a um iceberg: apenas a superfície deve ficar aparente, cabendo ao leitor imaginar – ou subentender – o que não está escrito com todas as letras. O mais importante, dizia, é o que não se conta.
Dois filmes recentes mostram que é possível dizer-sem-dizer de muitas maneiras diferentes. Em cartaz em Porto Alegre, Aftersun, dirigido pela escocesa Charlotte Wells, é um iceberg clássico: o que o filme não mostra é muito mais vasto e profundo do que aquilo que nos é revelado. Não há muitas explicações sobre a origem dos personagens, pai e filha pré-adolescente passando férias na Turquia, ou sobre o que acontece com eles depois dessa viagem. A história oculta é aquela que o espectador compõe preenchendo as lacunas da trama a partir de pequenas pistas – e do próprio repertório emocional.
Com estreia prevista para 2 de março e duas indicações ao Oscar (melhor filme e melhor roteiro adaptado), Entre Mulheres, dirigido pela canadense Sarah Polley, também conta duas histórias – talvez três –, mas em um registro mais próximo da fábula. A primeira história, uma série de estupros cometidos em uma comunidade menonita da Bolívia entre 2005 e 2009, inspirou a segunda, o romance Women Talking (2018), da escritora canadense Miriam Toews, no qual o filme é baseado.
Na vida real, os estupros eram negados pelos anciões da colônia, que atribuíam os supostos ataques a demônios enviados para punir as mulheres pelos seus pecados. As violências, cometidas contra mulheres e crianças desacordadas, continuaram até ser revelado que homens da própria comunidade borrifavam anestésico animal nas casas das vítimas antes de estuprá-las. Na ficção imaginada por Miriam Toews, as moradoras dessa pequena comunidade, mantidas analfabetas e submetidas aos homens e à religião, decidem que é preciso reagir – mesmo correndo o risco de serem punidas na terra e no céu.
Mas há ainda uma terceira história, aquela que cada espectador sobrepõe às tramas real e fictícia, relacionando o que parece distante e remoto a eventos que acontecem todos os dias, em todas as partes do mundo, à noite e à luz do dia.