“Éramos criados como cachorros selvagens nos anos 60”, brinca o comediante Jerry Seinfeld a certa altura da stand-up Jerry Before Seinfeld (Netflix): “Eles eram ignorantes, negligentes. Meus pais nem sequer sabiam meu nome!”. A graça da piada, claro, está em comparar a maneira como nós, adultos, fomos criados com os cuidados desfrutados pela geração dos nossos filhos e netos: redes nas janelas, cintos de segurança no carro e pais aflitos com sua proteção e bem-estar sempre a postos para oferecer um lanchinho saudável depois da aula de inglês. (Já nós, os cachorros selvagens, vamos admitir: nem no banco de trás do carro nos colocavam.)
Lembrei da piada do Seinfeld quando li a notícia sobre o youtuber brasileiro que viu evaporarem patrocínios e boa parte de sua popularidade depois de postar uma piada de conteúdo racista sobre o craque francês Kylian Mbappé no Twitter. Se você, como eu, nunca tinha ouvido falar de Julio Cocielo antes, é provável que também tenha crescido como “cachorro selvagem” e sem internet. Aos 25 anos, o cara, sozinho, tem mais patrocínios do que – vamos chutar – Feira do Livro, Bienal do Mercosul e Porto Alegre em Cena juntos. Nos últimos dias, Adidas, McDonald’s e Coca-Cola (patrocinadoras oficiais da Fifa), além de Submarino, Itaú, Tic-Tac e Foster, foram chamadas a explicar por que, raios, estavam dando dinheiro para um bobalhão que, na melhor das hipóteses, é apenas isso mesmo, um bobalhão. Um sujeito cujas credenciais para atrair patrocinadores resumem-se à quantidade estratosférica de seguidores nas redes sociais. Muitos desses seguidores, aliás, crianças cujos pais não sabem que Julio Cocielo existe nem por que seus filhos gostam tanto dele.
Em certo sentido, estamos assistindo ao surgimento de uma nova geração de crianças criadas como “cachorros selvagens” – longe da supervisão dos mais velhos. Uma geração que não cresceu na rua, como as crianças dos anos 1960 e 1970, nem protegida pelas cercas de um playground, como as dos anos 1980 e 1990, mas solta em um terreno desconhecido para a maioria dos adultos. Continuamos pais aflitos e superprotetores – talvez mais aflitos e superprotetores do que nunca –, mas a internet abriu uma janela para o mundo grande demais para ser vigiada o tempo todo. Mesmo os pais cuidadosos e preocupados com a vida digital das suas crianças ignoram boa parte do conteúdo que elas estão consumindo, por exemplo, no YouTube, esse universo paralelo onde Julio Cocielo é uma celebridade patrocinada pela Coca-Cola.
Parece inacreditável, mas os “malas do fundão” conquistaram o mundo. E com ele, os patrocinadores.
Todas as discussões sobre o que é adequado ou não para determinada idade ou sobre os limites da publicidade destinada ao público infantil são ficção científica nesse Velho Oeste virtual em que vale mais (grana) e ganha mais (cliques e seguidores) quem se comunica melhor na linguagem do guri de 12 anos – o que significa, muitas vezes, agir e pensar como aquele moleque que sentava no fundão da sala e era capaz de qualquer macaquice, mesmo as mais cruéis, para chamar atenção.
Parece inacreditável, mas os “malas do fundão” conquistaram o mundo. E com ele, os patrocinadores.