
Quem não derramou lágrimas para Theo, 5 anos, que foi comemorar o aniversário do pai e acabou arremessado ainda vivo de uma ponte por ele?
Quem não chorou por Anna, 7 anos, golpeada com nove facadas pela mãe em seu condomínio em Novo Hamburgo? Ou Kerollyn, 9 anos, encontrada morta em um contêiner de lixo em Guaíba? Ou Miguel, 7 anos, posto em uma mala e lançado nas águas do rio Tramandaí?
Quem conseguiu dormir depois de descobrir o sofrimento de Bernardo, Rafael e Anthony, alguns exemplos célebres de meninos maltratados e mortos pelos próprios familiares?
Ou os pequenos são jogados no rio, ou dopados, ou abandonados para sempre — padecendo de chagas que ninguém compreende.
Estamos exaustos de nos convencer de que eles se tornaram anjos no céu. Não mereciam o inferno na Terra. Poderiam ter sido anjos aqui, na escola, na comunidade, se não tivessem suas linhas do destino interrompidas pelo ódio.
Um levantamento assustador de Zero Hora constatou que, de 153 assassinatos de crianças de até 12 anos no RS ao longo da última década, 70 foram cometidos pelos pais. Quase a metade. As mães aparecem como as que mais mataram, com 41 crimes, secundadas pelos pais, com 18. Em 11 tragédias, o dueto pai-mãe surge como autor. O total é ainda maior quando se incluem padrastos e madrastas, responsáveis por 19 assassinatos. Outros familiares teriam sido pivôs letais em, pelo menos, nove casos.
Em 2015, 2016 e 2017, a violência familiar determinou cerca de 40% dos assassinatos de crianças. Já em 2024, esse percentual saltou para alarmantes 70%.
O perigo mora dentro do lar. A violência se faz mais presente nas entranhas domésticas.
Ou seja, não é na rua, não é na abordagem de estranhos, mas no próprio quarto. Não é uma bala perdida que surpreende pelas costas, mas a mão que está à frente segurando o berço.
Por que o nosso estado se converteu em uma fábrica de filicídio, com repetição inesgotável de crimes brutais e hediondos?
Não é possível culpabilizar uma região. Os focos estão espalhados, não predomina um lugar específico. São várias cidades do interior, do litoral ao pampa, como uma metástase da rejeição.
Qual será a cura para esse câncer coletivo?
Nunca o Conselho Tutelar se mostrou tão decisivo para antecipar e detectar avisos de maus-tratos. Precisamos fortalecê-lo como braço direito do Ministério Público.
Existe um adoecimento do sonho gregário, uma debilidade generalizada das figuras paterna e materna, que atentam contra vidas indefesas.
Aqueles que detêm o papel de cuidar das nossas crianças vêm se transformando em seus mais cruéis algozes.
É tradição recorrer ao pretexto de “famílias disfuncionais” — quem foi vítima na infância gera novas vítimas, numa reprodução das estruturas da truculência —, mas vejo que o problema vai além. Desponta uma sociopatia como base de criação, uma bandidagem disfarçada de proteção. Tem algo a mais, extrapolando a desordem e o caos. Tem uma motivação secreta, uma prática de aborto tardio a partir do homicídio.
A obediência filial é substituída por exploração. Logo em seguida, a submissão vira tortura, e o filho não pode dar um pio. Desaparece em silêncio. No fim, persiste um entendimento abominável de que crianças nascem para atrapalhar a existência e devem morrer.