
Todos que condenam o aborto dizem que a criança já está formada com 12 semanas. Os traços faciais se mostram definidos. Uma vida inteira já pulsa ali.
Mas, por outro lado, se você perde a criança no início da gestação, é como se ela não tivesse existido.
Não há luto, não há enterro, não há nome, não há conforto, não há trégua para recuperação materna. Parece que a criança era apenas um projeto, uma quimera, um devaneio.
São dois pesos, duas medidas.
Eu não entendo essa incoerência.
Para o nascimento, defende-se o pequeno com unhas e dentes. Diante da perda, nega-se o seu registro no mundo.
É necessário seguir a rotina e fingir uma estranha e incômoda normalidade.
Não deixa de ser um aborto legitimado pela sociedade, camuflado no tabu de que unicamente os vivos e os sobreviventes importam.
A perda gestacional é grave, merece respeito, afeta a saúde física e mental da mulher. Entretanto, se não ocorre a finalização do parto, apaga-se a passagem do rebento pelos sonhos de uma família.
O luto ainda é subestimado. Chora-se em segredo por carência de espaço e amparo. Engole-se o sofrimento introjetando traumas, recalques e desconfianças.
As enlutadas chegam a ouvir o despropósito de que basta engravidar de novo. Como se uma ferida cicatrizasse tentando pela segunda vez. Como se uma alma fosse passível de substituição. Como se uma pessoa se reduzisse a um brinquedo ou produto a ser trocado.
Somos pouco compreensivos com essa dor. É como ter o corpo assaltado. É como enlouquecer na solidão, porque todo o amor que você sente por alguém desaparece publicamente.
Bebês que falecem no ventre ou logo depois do parto continuarão sendo crianças desejadas, beijadas, acalentadas, amadas. Os sapatinhos de crochê se transformarão em luvas da saudade.
O que se absorveu de conteúdo desde o ultrassom até a preparação do enxoval não é descartável.
O bebê, mesmo que não tenha nascido, mesmo que não tenha pousado à proteção do colo, mesmo que não tenha soltado seu grito libertador, mesmo que não tenha certidão, é real. Não se trata de uma miragem ou uma alucinação.
As canções, as conversas, as carícias na barriga e as respostas dos chutes bem em cima da mão permanecerão como um repertório inesgotável de diálogo. É uma amizade com o corpo como nunca antes.
Há uma ideia equivocada de que, após uma gestação interrompida, você fica sem nada, de que é arremessado para o limbo, de que é sufocado pela amnésia, de que não pode nem professar que foi mãe ou pai um dia.
Deve ser reconhecida culturalmente a concretude do filho que não nasceu ou que não resistiu na UTI Neonatal. Ele possui relevância, marcou de modo indelével o curso das emoções, fincou as raízes com aprendizados, juras e cumplicidade da carne.
Esse filho requer um lugar sagrado na história daquele lar. Se ele não desfrutará do seu quarto na casa, que se reserve para ele o direito de um quarto na memória.
Para que aquele tempo precioso de gravidez jamais seja confundido com um engano.