
Estamos festejando o cinema nacional. Ganhamos o nosso primeiro Oscar com Ainda Estou Aqui.
Graças à minha mãe, desenvolvi o hábito de frequentar as salas escuras. Ela sempre levou os filhos desde cedo.
Livrarias e cinemas eram os nossos passeios constantes.
Agradeço a ela pelo cultivo da cultura dentro do lar. Desfrutei desse privilégio. Tanto que assisto a dois filmes por semana até hoje.
Só que a minha mãe tem um defeito: fala durante a exibição.
Ela é uma fofa, uma querida, uma flor de gentileza e educação, mas não há como controlá-la.
Eu desisti. Agora me acostumei.
Ela não somente fala, ela comenta o filme em tempo real, como se estivesse em sua casa, na frente da televisão.
Quando a acompanho, prevejo que serei crucificado por quem se encontra nas fileiras de trás.
Finjo que o “shiiiii” não é conosco.
Sou o cúmplice involuntário de seu pecado.
Ela começa sussurrando, depois se empolga e esquece que não estamos sozinhos, e passa a discursar.
Eu não respondo nada, o que não adianta coisa alguma. Ela entende meu silêncio como incentivo. Pensa que estou demonstrando interesse.
Aprendi a comer pipoca para abafar o parlatório materno.
Antecipando-se a qualquer cena, ela diz o que vai acontecer. O que acha que vai acontecer. Fica profetizando.
“Eu avisei!”
Concordar com ela não surte efeito.
Tudo é redundância na presentificação. As imagens projetadas já fazem parte de sua realidade. Ela reage como se pudesse votar ou influenciar no destino do elenco.
Toca no meu braço, cutuca, ri, chora, xinga.
Não sei se adivinha mesmo ou só quer ajudar os personagens a tomar a decisão certa.
A questão é que ela interage.
Nas películas de suspense, adverte os atores do perigo.
“Saia daí! Vai morrer!”
Nas histórias de amor, dá conselhos para um final feliz.
“Se declara logo!”
Quando se trata da adaptação de um livro que ela leu previamente, como O Conde de Monte Cristo, do francês Alexandre Dumas, ela se põe a corrigir a narrativa cinematográfica, argumentando que não vem sendo fiel à obra original.
Minha estratégia é sair da sala antes dos letreiros, antes que acendam a luz, antes que sejamos denunciados pela nossa localização.
Mas vejo que a minha mãe é uma injustiçada, uma incompreendida, uma proscrita das etiquetas silentes da sociedade. Não recebe espaço para praticar a sua adoração. Ninguém respeita a sua natureza devota e comprometida com a sétima arte. Ela representa a espectadora ideal, a que se entrega por completo para as emoções do momento, a que sofre e a que participa como se a ficção fosse verdade.
Acredito que deveria ser oferecida, além da sessão legendada e da dublada, uma outra, a falante, para quem não consegue permanecer quieto diante da exuberância da tela gigante, para pessoas comunicativas como ela, sensíveis como ela, apaixonadas como ela.