
Ela passeava pela praia do Cassino. Talvez elaborando seu próximo verso. Pois se escutava enquanto caminhava.
Ia concentrada em si, segura de seus sonhos. Era meio-dia. Andava lentamente para o almoço.
Nunca saberemos o que estava pensando.
Do nada, uma camionete subiu na calçada e a atropelou. Arremessou a poeta contra as grades de um edifício. Ela não resistiu ao choque.
Ela não estava atravessando a rua, não estava sob nenhum perigo. O condutor de 34 anos se encontrava embriagado e invadiu o meio-fio.
Não tinha como se defender. Não tinha como correr. Não tinha como pedir socorro.
De modo nenhum, o caso pode ser considerado um acidente.
A violência no trânsito matou a escritora e professora universitária Aimée Teresa González Bolanõs, 81 anos.
O álcool no sangue do motorista assassinou o futuro, as criações vindouras, o sorriso, o lirismo de uma personalidade cativante, cubana de nascimento e gaúcha por opção.
A imprudência na direção privou definitivamente os alunos de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) das aulas de uma das principais pensadoras sobre a autoria feminina na poesia contemporânea latino-americana e sobre a literatura cubana da diáspora.
Uma máquina mortífera deixou um filho sem mãe, duas netas (gêmeas) sem avó — ela não voltará a aproveitar o verão canadense ao lado da família.
Não me sai da cabeça um de seus poemas, Visão Elementar.
Por desígnios impenetráveis da intuição, sinto que, de alguma forma insondável, o texto profetiza o roubo vil de sua existência.
"Um pássaro ferido no ar
a inconstante lua submersa.
A casa de habitar as águas
com seus dias de ausência iguais.
Os vivos livres da lembrança
flanando em sua leveza.
Os mortos semeando flores
no pátio oculto da infância.
O fogo da casa que não arde.
A terra prometida que se desfaz"
Aimée foi o pássaro ferido no ar, pega pelos mortos no pátio oculto da infância. Cassino foi a casa de habitar as águas. O Rio Grande do Sul — que ela escolheu como lar desde 1997, a convite do professor e romancista Carlos Alexandre Baumgarten — simboliza a terra prometida desfeita.
Eu conheci Aimée de perto. Ninguém merecia esse desfecho trágico, muito menos alguém que apresentava uma vida solar e generosa.
Por mais que acumulasse títulos e cargos — professora adjunta da Universidade de Ottawa, com pós-doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autora de seis obras traduzidas para português, inglês, francês e árabe —, jamais se portava arrogante ou soberba. Era culta pela conexão com as pessoas, muito além dos livros.
Diante da sua simplicidade, não havia como descobrir a sua importância histórica (titular da FURG, ajudou a reestruturar o currículo do curso de Letras). Ouvia a todos com irrestrita atenção.
Intérprete do seu tempo, mobilizadora de saraus e antologias, tornou-se mais uma presa da brutalidade homicida do trânsito brasileiro.
Seu fim representa uma viagem inacabada.
Em contraste com tudo que ofereceu à cultura do estado, enriquecendo o meio acadêmico com as suas reflexões sagazes, terminou tendo a sua esperança abreviada pela maior exemplo de ignorância que há no mundo: embriaguez no volante.
Que esse crime não fique impune, como tantos outros cometidos em circunstâncias semelhantes, que se alongam por anos a fio, emperrados pela burocracia da Justiça.