Sou um animal pré-histórico. Não fui extinto porque talvez tenham me esquecido.
Eu ainda lustro os meus sapatos antes de sair de casa.
Ao me ver de banho tomado, arrumando-me para uma palestra ou para uma viagem, minha mulher só me avisa: “não vai se sujar agora com a graxa”.
Tenho a minha caixinha de madeira, meu estojo com os produtos desde a infância.
Eu me sento na mesinha da área de serviço com o calçado que vou colocar no dia, e esfrego o couro revezando a escova e o paninho. Continuo usando as latinhas de cera, com o lacre para virar para cima ou para baixo.
Seus efeitos cintilantes dependem da minha regularidade. Muito tempo inativa, a cera acaba craquelada e seca, formada por pedrinhas tristes, sem umidade, semelhantes a carvões.
Eu tiro os cadarços para não encardi-los. Ajeito uma cicatriz, removo um arranhão, dou uma geral no conjunto, uniformizo a cor. No fim, sopro para afastar o excedente, bem no momento em que a esposa aparece de novo em cena. Não comenta nada, mas deve me achar meio louco soprando o sapato.
O couro não fica novo, mas mantém a sua dignidade.
Descobrimos a idade do sapato pela sola. Como ninguém enxerga a sola, posso disfarçar. Às vezes, até recebo um elogio na rua, pelos cuidados constantes.
— Bonito modelo!
Eu me envaideço quando meus pisantes são reparados, porque eu me esforço para conservá-los.
Meu avô me alertava que nos mostramos ordeiros, disciplinados, dedicados pelos pés. O sapato revela como anda a nossa cabeça. É a ponta do iceberg da personalidade.
Ainda que ele seja castigado, ainda que seja velho, o que conta é como você o trata, preservando-o sempre limpo.
Sou um animal pré-histórico. Não me prendam num museu.
Eu sei que as pessoas não têm mais esse hábito arcaico, que são engolidas pela pressa e ansiedade, que preferem aposentar o par quando ele passa a ter muitas marcas ou a ponta gasta, que atualmente reina uma cultura do descartável.
Mas me faz um bem danado saber que posso fazer algo brilhar de manhã cedo.
Há um sol portátil na sua superfície, um reflexo de espelho, um fulgor de esperança.
É como se pudesse salvar, revigorar, consertar algo em mim. A recuperação da cartilagem dos sapatos é terapêutica, prova que nem tudo que é antigo deve ser posto fora.
Resgato minha pureza de menino, de quando colava um objeto quebrado ou montava protótipos de aviões. Tem no gesto uma comoção solidária com o mundo, uma confiança na regeneração, um carinho pelo simples.
Sinto que fortaleço laços e sucedo os homens da minha família ao prosseguir ritos de várias gerações pelo asseio com a aparência.
Não importa o quanto já trabalhei na vida, o quanto já conquistei, o quanto tenho sucesso, permaneço o meu próprio engraxate.
Sou um animal pré-histórico. Não me prendam num museu.