A pequena Kerollyn Souza Ferreira, de nove anos, foi encontrada morta em um contêiner de lixo perto da sua casa, no bairro Cohab Santa Rita, em Guaíba. Era alegre e carinhosa. Cuidava dos irmãos e pedia abraços por onde passava. Seu assassinato faz parte de uma estatística que coloca o Brasil entre os países com mais mortes de crianças e adolescentes. O Atlas da Violência 2024 revela que, entre 2012 e 2020, ocorreram 9.153 homicídios de meninos e meninas de zero a 14 anos, com 2.153 envolvendo crianças até quatro anos.
Tragédias assim deveriam ser interpretadas como um grito de socorro
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança 2024 mostram que houve 2.299 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes até 17 anos no ano passado, sendo 263 na faixa etária de zero a 11 anos. Os números citados levam em conta somente os atentados contra a vida, mas registros de estupro, maus-tratos, abandono e lesão corporal também são alarmantes. O mais grave é que boa parte acontece dentro de casa, em contexto de violência doméstica, perpetrados por adultos que deveriam proteger a meninada.
O caso de Kerollyn ilustra essa situação. Relatos indicam que ela vivia em condições de negligência e maus-tratos, a ponto de se abrigar e dormir em um carro abandonado. Com base nesses relatos, a polícia pediu a prisão da mãe por tortura, e o Ministério Público solicitou sua prisão temporária por suspeita de homicídio. A Justiça acatou o pedido, e a mulher está presa.
No entanto, a responsabilidade vai além da família. Vizinhos, professores, Conselho Tutelar e até o pai dela tinham conhecimento da situação e não tomaram medidas capazes de salvá-la. A naturalização do desmazelo, o medo de se envolver e a crença de que a solução cabe exclusivamente às autoridades contribuem para que inocentes sejam vítimas de delitos cruéis.
O caso de Bernardo Uglione Boldrin, garoto de Três Passos que clamou por ajuda e foi ignorado, é outro exemplo dessa omissão. Muitos sabiam do sofrimento dele, mas optaram por acreditar nas versões dos adultos. Bernardo procurou ajuda, mas a palavra do pai, médico respeitado na comunidade, prevaleceu. Resultado: foi cruelmente morto, estando o pai e a madrasta entre os quatro condenados pelo assassinato.
Tragédias assim deveriam ser interpretadas como um grito de socorro. É essencial rompermos o ciclo da violência e agir com mais empatia e responsabilidade. Enquanto sociedade, é nossa obrigação denunciar os maus-tratos e exigir medidas de proteção mais eficazes do poder público. Além de inaceitável, a omissão nos faz cúmplices silenciosos de mortes evitáveis. _