A maioria dos adolescentes envolvidos em atos infracionais no Rio Grande do Sul tem histórico de atraso escolar. É o que evidenciam os dados sobre o perfil dos internos da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase). Oito a cada 10 daqueles que estão cumprindo medida socioeducativa possuem distorção idade-série, ou seja, estão com dois anos ou mais de defasagem na escola.
Quando chegam à Fase, muitos adolescentes já estão no processo de abandono da escola. Além do envolvimento deles com atos infracionais, que motivam a internação, não é incomum a falta de percepção por parte das famílias sobre a importância da escolarização, avalia a coordenadora pedagógica da Fase, Clarissa Quadros.
— Em algum momento desse processo, eles acabam não tendo rede de apoio que faça com que eles permaneçam na escola. Quando a gente faz o atendimento aos adolescentes, ouve muito essa fala "a mãe tinha que sair para trabalhar, eu não tinha com quem ficar, às vezes tinha que cuidar de irmãos menores e acabava deixando a escola de lado" — exemplifica.
O trabalho infantil, em suas diferentes formas, entre eles a exploração da mão de obra de jovens pelas organizações criminosas, é fator que impulsiona o afastamento da escola, percebe a juíza do 3º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, Karla Aveline. Dos 394 internos da Fase no dia 4 de julho deste ano, quando foram coletados os dados, 68 cumpriam medida por tráfico de drogas, 103 por roubo e 132 por homicídio.
— O guri começa lavando carro, fazendo telentrega. O tráfico de drogas está ali no entorno, alimentando uma quantidade de usuários. Primeiro vem o trabalho infantil, depois as organizações criminosas. O tráfico é uma das formas de trabalho infantil, e uma das piores — analisa a magistrada.
As idades dos internos variam de 13 a 20 anos, sendo um terço na faixa dos 17 anos, a que concentra maior número. Com 13 e 14 anos há somente nove cumprindo medida. A defasagem escolar é mais evidente a partir do 6º ano, e o maior número de internos em atraso escolar aparece no 1º ano do Ensino Médio. Ao longo da última década, a coordenadora pedagógica da Fase diz que viu essa realidade se alterar aos poucos. Apesar das deficiências, os adolescentes estão chegando à Fase com a escolaridade mais avançada.
— Geralmente, esse abandono escolar, essa ruptura, acontece muito quando passa do quinto para o sexto ano, que era antes a quarta e quinta série. Mas esse período de escolarização vem se mostrando um pouco maior. A gente tem adolescentes chegando nas séries finais (do Ensino Fundamental) ou atingindo as séries finais dentro da fundação. E temos um percentual de alunos no Ensino Médio — afirma Clarissa.
Tentativa de resgate
Dentro da Fase, os adolescentes passam pelo processo de acolhimento, no qual é identificada em qual etapa escolar se encontram e analisado o histórico, para que possam dar seguimento aos estudos durante o cumprimento da medida. O intuito é que eles consigam retomar ali dentro o vínculo com a escolarização.
— Se esse adolescente não resgatar esse vínculo no curso do cumprimento da medida, a chance de ele fazer depois é muito menor. Até por uma colocação de mercado e ampliação de oportunidades no horizonte para esse adolescente no pós-medida — explica a pedagoga.
Entre as medidas apontadas como necessárias para mudar essa realidade, está o investimento em escolas de turno integral, que possam acolher crianças e adolescentes enquanto os responsáveis trabalham, ampliação de cursos profissionalizantes para jovens, que criem novas perspectivas, e manutenção desses adolescentes o maior tempo possível na escola.
Internos do sexo masculino são maioria
Outro fator que se torna evidente por meio dos dados é que 97,2% dos infratores são do sexo masculino. Dos 394 adolescentes, somente 11 são do sexo feminino. De todas unidades da Fase, somente em Porto Alegre há vagas para internas. Das 11 internas, somente uma delas cumpre medida por envolvimento com o tráfico de drogas, cenário bem diverso dos demais adolescentes.
— Mesmo quando a Fase teve superlotação, tivemos no máximo 50 meninas. A proporção sempre foi muito maior de homens do que mulheres, que, inclusive, acabam sendo prejudicadas. Enquanto a eles é assegurado o direito de ficar próximo das residências, as meninas têm que cumprir medida na Capital, às vezes a 700 quilômetros de casa — avalia o defensor público Rodolfo Lorea Malhão.
Advogada e socióloga, professora da Faculdade de Direito da UFRGS, e coordenadora do Observatório de Pesquisa em Violência e Juventude, Ana Paula Motta Costa ressalta que dois aspectos contribuem essencialmente para isso. Um deles é o fato de que os espaços públicos são mais masculinos, e é nesses locais, nas ruas, que se dão muitos dos crimes como tráfico de droga, roubos e furtos.
— Não quer dizer que as meninas não possam fazer isso também. Mas é bem mais distante da realidade em que uma mulher é educada, criada, em qualquer contexto. As meninas, em regra, estão em casa, nesses momentos, enfim, cuidando dos irmãos. O trabalho infantil de meninas é muito mais doméstico — diz.
Somado a isso, percebe que há uma construção da identidade masculina, que passa pela agressividade e demonstração de coragem para enfrentar riscos.
— É como se para ser homem fosse necessário ser agressivo, ter coragem, usar arma, enfrentar a polícia. Esse lugar masculino é muito relacionado a esse mundo de ato infracional. É valorizado aquele que se propõe a desafios, nos limites da sua própria vida, que se expõe, que busca de forma imediata resultado — explica.
A socióloga defende a necessidade de uma mudança cultural, especialmente na educação, desde a infância. Isso passa, por exemplo, pela comunicação não violenta, que trabalha formas de se expressar sem violência, e por homens desempenharem e serem valorizados por outros papeis, como de saber cuidar dos outros.
— Toda a violência ela é uma forma de comunicação. Se alguém usa da violência é, muitas vezes, porque não está sabendo se comunicar de outro jeito. Os homens são criados, ainda hoje, muito sem saber expressar sentimentos, como angústia, raiva. Isso vai se transformando num comportamento agressivo. A gente pode ir mudando, desde a forma de criar os filhos — ressalta.