
Num período de cinco dias, ao menos 10 mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul. Os casos aconteceram nos municípios de Camaquã, Parobé, Feliz, Santa Cruz do Sul, Bento Gonçalves, São Gabriel, Viamão, Pelotas e Ronda Alta, todos entre quinta (17) e segunda-feira (21), no feriadão de Páscoa e Tiradentes.
Zero Hora ouviu quatro especialistas na área para buscar compreender o que pode ser feito para evitar que outras mulheres sejam vítimas do mesmo tipo de crime. É consenso entre quem atua na área que o feminicídio é o ápice de uma série de violências, e que, na maioria dos casos, a não aceitação do término da relação é o desencadeador do ato brutal (veja abaixo o que dizem as especialistas).
A maior parte das vítimas de feminicídio não tinha conseguido pedir ajuda. Em 2024, 87,5% delas não tinham medida protetiva, e a maioria sequer havia registrado ocorrência. Alcançar essas mulheres, antes que o feminicídio se concretize, é um dos principais desafios.
— No Interior, essa rede de proteção vai se tornando escassa. Esses serviços especializados não chegam nas cidades do Interior, seja DEAMs, casas de abrigo, espaços dentro dos municípios. Essas políticas muitas vezes não estão estruturadas nessas cidades. Isso se torna mais difícil para que as mulheres possam buscar ajuda — alerta a professora de sociologia e integrante dos programas de pós-graduação em Sociologia e Segurança Cidadã da UFRGS, Rochele Fachinetto.
Como forma de tentar ampliar o acesso à proteção, a Polícia Civil anunciou, que até o fim desta semana, deve lançar a ferramenta para solicitação de medida protetiva de urgência pela internet. As especialistas ouvidas por Zero Hora apoiam a iniciativa, mas citam a necessidade de ampliar ou reforçar outros serviços. A Lei 14.541, de 2023, por exemplo, determina que as delegacias especializadas de atendimento à mulher funcionem 24 horas por dia, inclusive feriados e finais de semana. Isto só é realidade, no entanto, na Capital.
— A gente não pode esperar que uma mulher consiga se libertar de uma relação, sair do ciclo da violência, sozinha, fazendo esse tipo de rota crítica. Esperar cinco, seis horas, por um atendimento. Isso é violência institucional. Não é de se surpreender que as mulheres não consigam ser protegidas. Como a gente quer salvar essas mulheres sem estrutura? Para ter estrutura, precisa ter orçamento. Foram 10 mulheres assassinadas. Isso é absurdo, é inacreditável. Essa carnificina tem que servir para alguma coisa — diz a promotora de Justiça Ivana Battaglin.
O que sugerem as especialistas:
Ivana Battaglin

Promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher
- Reforçar delegacias especializadas no atendimento à mulher (DEAMs), com aumento de efetivo, e implementação do atendimento 24 horas
- Implementar mais casas de abrigo para mulheres (atualmente são 14 em todo Estado)
- Criar políticas de geração de emprego e renda
- Ampliar e garantir vagas em creche para que a mulher possa ingressar ou se manter no mercado de trabalho, como forma de combater a dependência financeira
- Fortalecer centros de referência das mulheres, com investimentos e recursos humanos
- Criar novamente a Secretaria de Políticas para Mulheres, extinta pelo governo de José Ivo Sartori em 2014
- Ampliar a divulgação sobre o tema, especialmente sobre os direitos das mulheres vítimas, como garantia de matrícula de filhos em escola em casos de necessidade de transferência
- Incluir educação sobre igualdade de gênero nas escolas, como forma de buscar resultado a longo prazo
O RS é um dos Estados que mais concede medidas protetivas, o que é muito bom. Mas a maioria das mulheres que morreram não tinha medida protetiva. Por que não pediram ajuda? Por medo, falta de rede de apoio, da família, dos amigos, do Estado.
IVANA BATTAGLIN
Promotora de Justiça
Na avaliação da promotora, a mulher vítima de violência "não vê saída, por conta da dependência financeira, da preocupação com os filhos, por vergonha, por não saber os seus direitos, por acreditar que seria a última vez".
— É tarefa do Estado agir para que essa mulher se sinta protegida — afirma.
Rochele Fachinetto

Professora de sociologia, integrante dos programas de pós-graduação em Sociologia e Segurança Cidadã da UFRGS, coordenadora do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania e integrante do Observatório da Violência de Gênero: Feminicídios, Violência Doméstica e Violência Política da UFRGS
- Fortalecer as redes de proteção às mulheres, especialmente no Interior, por meio de investimentos e recursos humanos
- Instalar novas casas de abrigo e outros espaços nos municípios para implementação de políticas para as mulheres
- Criar ações de empoderamento e acolhimento das mulheres
- Ampliar nas escolas e outros espaços comunitários discussões sobre direitos das mulheres, igualdade de gênero, sobre o que é violência e o respeito à mulher
O feminicídio é o ponto máximo de uma trajetória de violências. Vem de um processo em que a mulher é humilhada, controlada. Nosso desafio é reconhecer essa trajetória e criar mecanismos eficazes para que se possa identificar não só o momento máximo da violência.
ROCHELE FACHINETTO
Professora da UFRGS
A pesquisadora defende a adoção de medidas de curto, médio e longo prazo.
— Tanto em proteger a mulher em risco iminente, oferecendo estrutura e suporte para reconstruir sua vida, quanto do ponto de vista das novas gerações, da educação, das novas formas de masculinidade, não associadas à violência. Pensar tanto a esfera do sistema de justiça, como de outras instituições, que possam garantir mais autonomia a essas mulheres, para que consigam reconhecer essa violência, e encontrem caminhos para romper com esse ciclo — analisa Rochele.
Nadine Anflor

Deputada estadual e primeira mulher a ser chefe da Polícia Civil do RS
- Criar espaços de escuta e tratamento dos possíveis agressores antes que eles cometam os atos
- Usar tecnologia e inteligência artificial para prever cenários de risco e para interligar áreas como saúde e segurança pública, e, dessa forma, melhorar a prevenção
- Ter espaços de assistência psicossocial abertos 24 horas
- Discutir em audiência pública a forma de divulgação dos feminicídios pela mídia
É preciso trabalhar com predição. Antecipar-se. Tentar utilizar a tecnologia, inteligência artificial, para ter atuação anterior a tudo isso, tentando identificar padrões de risco. Antecipar situações de violência. Esse é o grande gargalo.
NADINE ANFLOR
Deputada estadual
A deputada ainda cita o trabalho junto ao agressor como forma de combater a violência de gênero.
— Não tem como focar em políticas públicas somente em relação à mulher. Para mudar essa cultura, que a gente diz que é machista, é arraigada no sentimento de posse, precisa ter espaço de escuta para homens. Trabalhar formas de apoio a esses homens que ainda não têm ocorrência registrada — propõe Nadine.
Gabriela Souza

Advogada e especialista em direito das mulheres
- Implementar novas delegacias especializadas no atendimento à mulher
- Aumentar efetivo das delegacias e capacitar servidores com perspectiva de gênero
- Ampliar opções de abrigamento e humanizar esses espaços
- Implantar unidades da Casa da Mulher Brasileira (referência no atendimento às vítimas de violência doméstica)*
*Segundo o Ministério das Mulheres, estão em fase de implementação as unidades em Porto Alegre e Caxias do Sul.
Não temos vagas nos abrigos, e a rede de acolhimento às mulheres está absolutamente defasada. Há um sucateamento da rede de proteção. Para além disso, temos poucas delegacias especializadas, num Estado que tem tanta repercussão negativa. É muito pouco o que nós temos.
GABRIELA SOUZA
Advogada
A advogada considera "preciso parar de tomar decisões somente quando as notícias revelam os absurdos".
— É preciso tomar decisões políticas com antecedência, para que se proteja a mulher, e não só reagir diante de um feminicídio. A gente não precisa que os feminicídios estejam consumados para então pensar em políticas públicas eficazes para as mulheres — comenta Gabriela.
Polícia diz que é inviável ter DEAMs 24 horas
Chefe da Polícia Civil, o delegado Fernando Sodré afirma que não há como cumprir a legislação e implantar as delegacias da mulher com plantões 24 horas. Atualmente, o RS conta com as chamadas Salas das Margaridas, que são espaços nos plantões das delegacias para atender mulheres vítimas de violência.
— A questão é a disponibilidade de efetivo, de recursos humanos, para essas delegacias. Hoje é inviável pensar nessa perspectiva da lei. A lei criou uma coisa sem verificar se era possível ou não. Não conheço outro Estado do Brasil que tenha. O que nós queremos ampliar são as DEAMs, instalar outras no Estado. Queremos instalar em Rio Grande, Esteio, e tem outras para serem instaladas ao longo do ano. Mas nenhuma delas com funcionamento 24 horas — afirma.
Programas já existentes no RS
- Sala das Margaridas: espaços de acolhimento às vítimas de violência doméstica, instalados em delegacias não especializadas.
- Delegacia Online da Mulher: disponível desde 2022, é uma página exclusiva para tratar da violência doméstica e de gênero contra a mulher, hospedada dentro do site da Delegacia Online.
- Patrulha Maria da Penha: formada por policiais da BM capacitados para atuar em situações de violência doméstica contra a mulher. Sua função é fiscalizar o cumprimento das medidas, esclarecer dúvidas, fornecer informações e orientações, visando prevenir e evitar novas violências.
- Monitoramento do agressor: projeto de monitoramento eletrônico de agressores, que fazem uso de tornozeleiras eletrônicas para evitar a aproximação das vítimas amparadas por medidas protetivas de urgência.
O que diz a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do RS:
A Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do RS enviou nota sobre o serviço de atendimento às mulheres vítimas de violência. Confira:
“O Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado (CRM-VAM), é um serviço estadual localizado em Porto Alegre, dedicado ao atendimento especializado de mulheres em situação de violência. Atualmente, o Centro oferece atendimento psicossocial, acolhimento, encaminhamentos aos serviços da Rede de Proteção à Mulher e orientação para mulheres, no Estado do Rio Grande do Sul, em situação de violência.
Principais funções do CRM-VAM:
Atendimento especializado: Oferece apoio psicológico e social por meio de uma equipe multidisciplinar, auxiliando mulheres que enfrentam violência de gênero e doméstica.
Encaminhamento para casas-abrigo: Quando uma mulher registra um boletim de ocorrência e necessita de proteção, o CRM poderá ser acionado para encaminhá-la até uma casa-abrigo, que são administradas pelos municípios.
Atuação em rede: Caso os serviços dos municípios ou a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) não consigam encaminhar a vítima para acolhimento, realizam o contato com o CRM-VAM para articular com a rede de apoio do município buscando suporte para o acolhimento institucional.
Além do atendimento, o CRM-VAM realiza assessoria técnica nos Centros de Referência da Mulher municipais, a fim de orientar a equipe técnica que compõe o serviço, além de aproximar, alinhar fluxos e melhorar o atendimento a nível de Estado.
Contatos do CRM-VAM:
Endereço: Rua Miguel Tostes, 823, bairro Rio Branco, Porto Alegre.
Escuta Lilás: 0800 541 0803.
WhatsApp: (51) 98151.5249
E-mail: crm@justica.rs.gov.br.
Horário de atendimento: De segunda a sexta-feira, das 8h30 às 18h.”
Como pedir ajuda
Brigada Militar – 190
- Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento é 24 horas em todo o Estado.
Polícia Civil
- Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente, à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas.
- Em Porto Alegre, há duas Delegacias da Mulher. Uma fica na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, no bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências).
- A outra foi inaugurada na segunda-feira (19) e passou a receber ocorrências na terça (20). O espaço fica entre as zonas Leste e Norte, na Rua Tenente Ary Tarrago, 685, no Morro Santana. A repartição conta com uma equipe de sete policiais e funciona de segunda a sexta, das 8h30min ao meio-dia e das 13h30min às 18h.
- As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há DPs especializadas no Estado. Confira a lista neste link.
Delegacia Online
- É possível registrar o fato pela Delegacia Online, sem ter que ir até a delegacia, o que também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.
Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180
- Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima. A Central funciona diariamente, 24 horas, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil.
Ministério Público
- O Ministério Público do Rio Grande do Sul atende em qualquer uma de suas Promotorias de Justiça pelo Interior, com telefones que podem ser encontrados no site da instituição.
- Neste espaço é possível acessar o atendimento virtual, fazer denúncias e outros tantos procedimentos de atendimento à vítima. Acesse o site.