Até uma semana atrás, os cinco delegados encarregados de elucidar a maior tragédia gaúcha tinham uma dúvida: o prefeito de Santa Maria teria responsabilização sugerida no inquérito? Dificilmente, era o consenso entre eles. A atuação do mandatário da cidade palco do incêndio foi indireta - nomeou secretários, que chefiavam fiscais, que olharam papéis, produzidos por bombeiros. E só os bombeiros teriam entrado na boate para fiscalizar as condições de segurança.
Ou seja: assim como Lula no caso Mensalão, Cezar Schirmer - um quadro histórico nacional e fundador do PMDB - teria sido o último a saber da arapuca que era a Kiss. E então veio a divulgação do relatório final do inquérito e o petardo nas pretensões políticas do prefeito: os policiais acreditam existirem fatos capazes de justificar que Schirmer responda a um processo criminal por homicídio culposo. Teria sido negligente na fiscalização da danceteria. Só não será indiciado e processado em Santa Maria porque tem foro privilegiado. Um abalo na carreira de um político de sucesso, mesmo que o processo sequer tenha sido aberto.
O que fez os delegados mudarem de opinião?
Provavelmente, a teoria do domínio do fato. Muito citada no Direito, ela diz que a autoria de um crime não pode se circunscrever a quem pratica pessoal e diretamente o delito. Ela estabelece diferença entre autoria e participação. Schirmer, claramente, não é autor do incêndio, nem estava perto da boate quando ela virou uma fornalha assassina. O problema é que o prefeito é, em última instância, responsável por nomear aqueles que devem fiscalizar locais públicos, entre eles as casas noturnas. É como o engenheiro que responde, criminalmente, por uma obra malfeita pelos trabalhadores da construção e gerenciada pelo capataz.
Os capatazes de Schirmer, aliás (seus secretários), também tiveram responsabilização sugerida. Inclusive por homicídio, como é o caso de Miguel Passini, o atual secretário de Mobilidade Urbana. Ele era chefe dos fiscais que deveriam ter fechado a boate e não apenas aplicado multas. E que não viram que os alvarás dos bombeiros estavam vencidos.
O delegado Sandro Meinerz, relator do inquérito, justifica a responsabilização sugerida do prefeito e também a recomendação para que o Legislativo abra investigação por improbidade (má gestão) contra Schirmer:
- A sociedade foi ferida de morte. O prefeito administra as secretarias que se omitiram na fiscalização. Há nexo causal entre as mortes e a administração municipal.
E não se pode acusar os policiais de desequilíbrio político nos indiciamentos. Cumpriram a promessa de não perdoar ninguém. Os bombeiros, os primeiros a liberar o funcionamento da boate, foram duramente atingidos pelo inquérito. Se Schirmer foi apontado como responsável por homicídio, o comandante regional dos bombeiros de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, também deverá responder pelo mesmo crime, na Justiça Militar. Junto com 10 subordinados. Tudo isso será agora analisado pelas diversas esferas judiciais.
Divulgação do inquérito
Os delegados encarregados das 13 mil páginas de interrogatórios e perícias entregaram, a partir das 14h30min desta sexta-feira, o relatório do inquérito que aponta quem eles consideram responsáveis pelo incêndio que matou 241 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, na madrugada do dia 27 de janeiro.
VÍDEO: a homenagem aos filhos de Santa Maria
Clique na imagem e confira o perfil das 241 vítimas:
Como aconteceu
O incêndio na boate Kiss, no centro de Santa Maria, começou entre 2h e 3h da madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, quando a banda Gurizada Fandangueira, uma das atrações da noite, teria usado efeitos pirotécnicos durante a apresentação. O fogo teria iniciado na espuma do isolamento acústico, no teto da casa noturna.
Sem conseguir sair do estabelecimento, pelo menos 240 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridos.
A tragédia, que teve repercussão internacional, é considerada a maior da história do Rio Grande do Sul e o maior número de mortos nos últimos 50 anos no Brasil.
Em gráfico, entenda os eventos que originaram o fogo:
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