Esse foi o título da minha conferência de abertura do Simpósio da Academia Nacional de Medicina, sobre O Direito de Morrer.
Antecipei que, quando se discute o conceito de morte digna, temos de considerar primariamente a circunstância em que ela ocorre: súbita, traumática ou arrastada por doença crônica, além da idade da pessoa.
A perda de um jovem que nem viveu o suficiente para se justificar neste mundo e a morte de um indivíduo sadio até o evento são, evidentemente, diferentes daquela que representa um ponto final de uma enfermidade crônica que arrastou a vítima e sua família pela via crucis do sofrimento. Principalmente quando esse sofrimento não envolvia nenhuma perspectiva de benefício e significava apenas a protelação injusta do desfecho inevitável. Admito, constrangido, que demorei algum tempo para aprender que desejar a morte de um familiar nessa condição não tem nada de desamor, é só um gesto de dolorosa compaixão.
A naturalidade com que se convive com o acontecido no velório de pacientes idosos é reveladora da nossa tendência de interpretar a morte como um previsível e imutável ponto final do ciclo biológico.
No entanto, não se deve esquecer que essas racionalizações são desapegadas de afeto, porque a morte sempre parecerá cruel, dolorosa e extemporânea aos olhos de quem ama, independentemente da idade do falecido.
Por que é assim? Porque o afeto não é um sentimento racionalizável, e disso só entendem bem os sobreviventes da dor da perda, ou seja, os que morrem um pouco com os que se vão.
A noção de morte digna devia exigir um tempo de preparação que permitisse o resgate dos afetos negligenciados, a confissão dos amores omitidos e o reconhecimento agradecido pelo querer bem incondicional.
Não há possibilidade de morte digna num mar de sofrimento físico, de tal modo que um princípio básico do atendimento profissional é a noção de que toda queixa clínica representa uma urgência médica. Nada mais incompreensível do que um paciente terminal gemente de dor num hospital moderno. Isso deveria ser visto como a mais grosseira capitulação da medicina, cuja principal missão é aliviar sofrimento.
Como a convivência com a proximidade da morte é um devastador exercício de impotência, compreende-se que o médico queira interrompê-lo por sedação do pobre paciente, mas essa decisão também precisa ser compartilhada.
O Juvenal tinha se tornado um amigo querido durante os anos de convívio com uma fibrose pulmonar que o alcançara acima da idade limite para o transplante. Quando comuniquei à esposa que pretendíamos sedá-lo para interromper a angústia inútil, ela me disse: "Por favor, não. Estávamos falando e ele me disse umas coisas tão bonitas! Não interrompa essa conversa, por favor!".
Horas depois, quando voltei ao quarto, ele tinha acabado de morrer e ela me abraçou e, carinhosamente, agradeceu: "Obrigado, doutor. Por sua generosidade, nós tivemos a segunda melhor noite das nossas vidas!".
Aprendi, neste dia, o quanto sabemos pouco do que é melhor para cada pessoa no ocaso do seu universo único e intransferível.
Outro imenso desafio à sensibilidade médica é conviver com a família e descobrir que o mais revoltado e inconsolável é o mau filho, que se apercebeu que a última oportunidade de recuperar o afeto renegado está indo embora.
Por fim, resistir à pressão descabida de algumas famílias em transferir o paciente para a solidão desumanizada da UTI e garantir que ele tenha seus instantes finais sem nenhum sofrimento físico, de mãos dadas e olhando no olho das pessoas que de fato vão sentir a sua falta é o mais próximo que podemos chegar do conceito de morte digna.
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Palavra de médico
J.J. Camargo: a noção de morte digna
Colunista escreve em todas as edições do caderno Vida
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