O Genaro chegou da Itália num navio cargueiro, com pouca roupa e documentação incompleta. Quando aportou em Santos, não tinha ainda definido seu destino final. A solidão que lhe apertava o peito durante a noite era a senha da liberdade para decidir o que quisesse depois que nascia o sol. Quis ver como era o trabalho no porto, dando um tempo enquanto deliberava. O soldo mal cobria o hotelzinho vagabundo que ficava logo depois da esquina e, não bastasse, no terceiro dia, foi assaltado.
A imagem da faca apontada para seu estômago não lhe permitiu dormir e, assim, no dia seguinte, desembarcou em São Paulo, de onde partiu uma semana depois, atordoado com o ruído das ruas que lhe recordava a Nápoles que abandonara como único sobrevivente de uma família de quatro irmãos, destroçada pela Segunda Guerra. Dormiu em Lages (SC), perambulou pela Serra Gaúcha e tomou uma decisão: alugou um quartinho numa pensão em Porto Alegre, onde pretendia trabalhar algum tempo para conseguir dinheiro para o traslado a Buenos Aires que, ficara sabendo, era a maior colônia italiana na América Latina àquela época.
Quando o conheci, 50 anos depois, ele ainda continuava por aqui e a permanência não tinha nada a ver com falta de dinheiro, ele se tornara um dos homens mais ricos do Estado. Resumia tudo assim: "Gostei daqui logo na chegada e, depois do primeiro pôr do sol, tive certeza da dificuldade que seria ir embora".
Não foi. Criou uma grande empresa, onde a família numerosa trabalhava. No fim da tarde, todos se reuniam na grande mansão debruçada sobre o Guaíba. Com o protótipo de felicidade acabado, o Genaro adoeceu. Fumante inveterado, negou a enfermidade até o limite do possível e, quando consultou, já tinha emagrecido 10 quilos. Em raros pacientes encontrei a coragem que ele revelou ao discutir com absoluta naturalidade o fim de vida, extemporâneo e injusto.
Num final de tarde, enquanto conversávamos na enorme varanda de frente para o rio, chegou um jovem funcionário da empresa e estacionou sua moto na lateral de uma rampa curva com piso de pedra bruta, de onde se acessava a casa pelos fundos. Entregou-lhe uns papéis para assinar e, antes de sair, deu-lhe um beijo na testa e comunicou: "Seu Valter disse que o senhor ia gostar de saber que as ações da empresa deram um salto de três pontos". Dito isso, desceu a rampa fagueiro e, antes de completar a curva, saltou sobre o corrimão caindo em pé, ao lado da moto.
O Genaro, de olhos marejados, cheio de dor por metástases na coluna e pendurado num cateter de oxigênio, confessou-me: "Daria tudo o que construí na vida por este salto. E este não tem nada que ver com a bolsa!".
Dei-lhe a mão e ficamos assim, em silêncio, na companhia consoladora de um pôr do sol que nunca se repete.
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Palavra de médico
J.J. Camargo: a barganha impossível
Colunista escreve em todas as edições do caderno Vida
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