Nos últimos 50 anos, a medicina avançou mais do que em toda a história da humanidade pelo assombroso progresso tecnológico, que contou com a contribuição de inúmeras áreas do conhecimento. A aplicação da física transformou o mundo da imagética, e enquanto o Raio-X era o método mais sofisticado de inspeção não invasiva do corpo humano há apenas 30 anos, atualmente as incríveis imagens da moderna tomografia têm estimulado os mais audaciosos a sugerir diagnósticos histológicos. A antecipação dos achados pelos exames de imagem melhorou a seleção dos pacientes e praticamente extinguiu as inúteis cirurgias oncológicas exploradoras.
A necessidade de acompanhar os batimentos cardíacos de astronautas conduziu ao desenvolvimento dos moderníssimos monitores da terapia intensiva, e os avanços da genética e os progressos da biologia molecular prenunciam a conquista da tão sonhada longevidade qualificada.
Apesar dessa competência adquirida, os pacientes idosos de hoje falam com nostalgia dos médicos de ontem. E lamentam a superficialidade das relações impostas pela chamada medicina moderna. Quando houve a ruptura? Onde perdemos o compasso?
É verdade que o médico antigo, limitado à condição de mero contemplador da história natural das doenças, dedicava-se exclusivamente a aliviar sofrimento e, nesta tarefa, os quesitos parceria e solidariedade eram as escassas armas de que dispunha.
É possível que o médico moderno, cônscio de sua maior competência, tenha sido vítima de alguma soberba, mas nada que justifique a frieza de que se queixam os pacientes.
A chamada medicina de grupo, um subproduto lamentável da socialização do atendimento, substituiu a figura do "meu médico" pelo "meu plano de
saúde" e pariu a figura do atravessador, que delibera sobre a necessidade de exames, escolhe terapias e materiais, exige justificativas para condutas das quais não tem a menor noção, determina que o paciente deva vir de casa sem preparação para uma cirurgia de grande porte, enfim, brinca de médico, mas, quando pressionado, nega-se a assumir qualquer responsabilidade, porque, afinal, isso é coisa para os médicos de verdade.
Essa sucessão de atropelamentos do bom senso, aliada a honorários aviltantes, tem minado o ânimo de um profissional que devia ter sua atividade embalada pela doçura e pela generosidade, e se sente frustrado ao vê-la transformada em mero instrumento de sobrevivência. Não desisto de transmitir aos iniciantes minha convicção de que medicina de qualidade, temperada com uma boa relação afetiva, é receita certa para a realização pessoal e profissional.
Mas agora mesmo fiquei desconfortável ao perceber que está cada vez mais difícil convencer os mais jovens de que isto ainda é possível e conseguir entusiasmo para seguir colocando lenha na fogueira dessa utopia.
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Palavra de médico
J.J. Camargo: devolvam nosso sonho
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