
O Conselho Federal de Medicina (CFM) criou a Comissão de Saúde e Espiritualidade para pesquisar e discutir evidências científicas de como a fé pode impactar os casos clínicos dos pacientes.
A iniciativa vem na esteira de um crescente entendimento sobre a relação entre as duas áreas. Em 1988, a Organização Mundial da Saúde (OMS) inseriu a espiritualidade em seu conceito de saúde com o pressuposto de que a fé desempenha um papel importante e ajuda os pacientes a ter mais bem-estar e a lidar com o sofrimento.
Mais recentemente, em 2022, artigo publicado no The Journal of the American Medical Association (Jama) mostra que quem participa de grupos espirituais aumenta as chances de levar uma vida mais saudável e melhora a reação do corpo frente a enfermidades mais graves.
Evidências científicas
A coordenadora da Comissão de Saúde e Espiritualidade e 2ª vice-presidente do CFM, Rosylane Rocha, explica a pretensão do grupo recém-criado:
— O objetivo é fazer uma análise dos estudos publicados que falam sobre a relação da prática da religiosidade e da espiritualidade com a recuperação e a evolução clínica dos pacientes. Vários médicos oncologistas já trabalham isso com pacientes que passam por tratamento de câncer.
A comissão é formada por médicos, entre eles estudiosos e pesquisadores. Conforme Rosylane, a ideia surgiu por já haver discussão sobre o tema em congressos de medicina.
Em relação a como isso será institucionalizado, a coordenadora fala na elaboração de diretrizes para guiar os profissionais da área sobre o tema:
— A proposta da comissão é que possamos fazer um levantamento do que há de evidências científicas relacionadas ao impacto da religiosidade e da espiritualidade na saúde das pessoas, e que ao final possamos elaborar uma norma ética para que os médicos tenham um posicionamento oficial do Conselho Federal de Medicina.
Respeito à diversidade religiosa
Integrante da Comissão de Saúde e Espiritualidade do CFM e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o médico psiquiatra Bruno Paz Mosqueiro vê a criação do grupo como um progresso no país:
— A ideia é trabalhar o que temos de conhecimento científico, artigos, publicações e diretrizes para instrumentalizar os profissionais médicos para levar isso de uma forma adequada aos atendimentos.
Também coordenador da Comissão de Estudos em Espiritualidade e Saúde Mental da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Mosqueiro lembra a existência de estudos que analisam a relação entre medicina e espiritualidade.
— Os pacientes perguntados sobre esses temas já se sentem mais conectados com o médico e percebem a qualidade do atendimento como melhor — assegura.

Abordagem centrada na pessoa
A institucionalização desse campo na área médica passa pela instrumentalização dos profissionais da medicina. Na prática, os médicos precisarão dominar o assunto e encaminhar os pacientes nesse sentido.
— Eticamente, não podemos prescrever uma religião ou espiritualidade para quem não acredita. Mas se a pessoa tem uma fé e identificamos que está sendo importante, temos o dever de reforçar essa indicação, assim como reforçamos os cuidados de quem pratica atividade física e se alimenta bem — ilustra Mosqueiro.
O médico, que trabalha há 10 anos com essa pauta, esclarece que a abordagem leva em consideração o que a pessoa traz de crença em sua religião.
— A ideia é que a abordagem seja centrada na pessoa que nos procura e aberta à diversidade cultural — observa. — Isso já faz parte da rotina de quem trabalha com doenças graves. A ideia da comissão é qualificar esse atendimento e trazer as diretrizes científicas para nos ajudar nessa abordagem.
Cursos de Medicina já abordam espiritualidade
Coordenadora da Liga Acadêmica de Saúde e Espiritualidade (Lase), que existe há mais de cinco anos no curso de Medicina da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a professora Edna Sayuri Suyenaga comenta que até alunos de História já participaram dos encontros:
— Observo que os estudantes veem (o atendimento médico) com outros olhos, e não apenas daquele ponto de vista tecnicista. Eles têm um olhar mais empático para tratar o ser humano como uma pessoa cheia de sentimentos.
O professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) Maximiliano Wolfgramm Silva diz que a cadeira de Cultura Religiosa dialoga com a realidade do curso de Medicina. Ele ressalta que a instituição de ensino de Canoas, na Região Metropolitana, manteve durante muito tempo o Hospital Universitário, atualmente administrado pela prefeitura.
— Sempre tivemos um serviço de capelania hospitalar, que justamente é o reconhecimento da valorização da espiritualidade enquanto elemento de promoção de saúde — pondera.
Se a pessoa tem uma fé e identificamos que está sendo importante, temos o dever de reforçar essa indicação, assim como reforçamos os cuidados de quem pratica atividade física e se alimenta bem
BRUNO PAZ MOSQUEIRO
Médico psiquiatra e integrante da Comissão de Saúde e Espiritualidade do Conselho Federal de Medicina
Na residência médica da Ulbra existe uma disciplina chamada Espiritualidade e Saúde. O tema também é abordado na cadeira Introdução à Profissão Médica.
— A saúde precisa ser compreendida como algo mais amplo: não apenas como ausência de doença, mas como plenitude de vida. Essa compreensão mais humanizada da saúde está enraizada na formação médica e se conecta muito bem com o que a espiritualidade procura nessa interação — reflete Silva.
Oportunidade de aprendizado
Já a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) oferece aos alunos de Medicina a disciplina Espiritualidade na Prática Médica. O professor Jefferson Becker, da Escola de Medicina da universidade e que integra o Núcleo Neurociências e Saúde Mental, afirma:
— Tem vários alunos que veem isso como uma grande oportunidade de aprendizado e de abordar um aspecto da medicina que, às vezes, não é bem explorado.
De acordo com Becker, que ministra aulas sobre espiritualidade e a relação entre médico e paciente, a receptividade tem sido boa:
— A universidade recomenda não entrar muito nesse aspecto de religiosidade. Pede para que a gente aborde a espiritualidade. Isso porque a pessoa pode ser bastante espiritualizada e não ter nenhuma religião.