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Baseado em pesquisas e treinamentos realizados em instituições como as universidades de Harvard e Stanford, o psiquiatra gaúcho Marcelo Trombka, 37 anos, criou em Porto Alegre nos últimos anos uma comunidade em torno da prática do mindfulness, a meditação baseada na ciência que tem entre seus objetivos treinar o foco no momento presente.
O passo seguinte foi ampliar essa comunidade para além das fronteiras geográficas e falar de saúde mental de forma ainda mais abrangente.
Há seis meses, ele fundou o Instituto Brasileiro de Bem-Estar e Mindfulness (Ibem), plataforma online que pode ser acessada por meio de assinatura e que oferece práticas de meditação guiadas, encontros ao vivo e outros conteúdos relacionados a temas como redução do estresse e da ansiedade, melhora do sono, e aumento do foco e da produtividade.
Nesta entrevista, Trombka fala sobre a epidemia de ansiedade que estamos vivendo, os desafios de manter o foco em um mundo hiperconectado, por que somos mais gentis com os outros do que conosco mesmos e como podemos nos tornar melhores em ter bem-estar, entre outros temas.
Leia a entrevista após o vídeo:
Por que parece tão difícil manter o foco hoje em dia, seja no trabalho, nos estudos ou na vida pessoal?
Tem muito a ver com um excesso de estímulos. Parece que todo mundo quer um pouquinho da nossa atenção. Temos as redes sociais, os celulares, demandas de trabalho e de família. É um desafio muito grande. O modo como direcionamos nossa atenção vai determinar nosso tempo e nossa qualidade de vida.
Parece haver uma cobrança para sermos multitarefa, ou seja, para realizarmos várias tarefas ao mesmo tempo.
O mundo exige que sejamos multitarefa, mas nosso cérebro não foi feito para isso. Achamos que podemos comer e responder uma mensagem ao mesmo tempo. Por isso, mandamos um e-mail e não anexamos o arquivo. O que nosso cérebro faz é um task switching: fica mudando de tarefa o tempo inteiro.
Mas sair de uma tarefa, fazer outra e depois voltar à primeira não é simples assim. Gera um enorme gasto de energia para o cérebro. Por isso, terminamos o dia exaustos.
Como nosso cérebro recruta circuitos cerebrais específicos para cada tarefa, acabamos perdendo até 40% de produtividade ao tentarmos fazer mais de uma tarefa ao mesmo tempo. Seremos muito mais efetivos e produtivos se fizermos uma coisa de cada vez.
Que ferramentas podemos empregar para gerenciar nosso foco?
O mindfulness é uma delas porque permite que consigamos sustentar nossa atenção na mesma tarefa.
Outro tema de que falo muito é o sono. Precisamos descansar à noite para estar bem no outro dia. Por isso, é recomendável limitar o uso de telas a partir das 20h ou 20h30min. Isso vale para celular, televisão etc. Se o estímulo luminoso da casa ou do celular está chegando à minha retina, o cérebro não entende que é hora de dormir, e aí não temos sono.
Uma rotina de relaxamento também ajuda, preparando o corpo para dormir: tomar um banho quente, fazer refeições mais leves, evitar cafeína, evitar atividade física muito intensa à noite.
Acabamos perdendo até 40% de produtividade ao tentarmos fazer mais de uma tarefa ao mesmo tempo
MARCELO TROMBKA
Psiquiatra
Como lidar com as demandas que vêm de outras pessoas à noite, como mensagens de WhatsApp?
Precisamos educar as outras pessoas. Costumamos achar que devemos estar sempre disponíveis, seja no trabalho, seja nas relações pessoais, familiares ou de amizade.
Se alguém me manda uma mensagem às 20h30min e eu tenho o hábito de responder, estou passando para essa pessoa a ideia de que estou disponível. Então, de alguma forma, temos de dizer: “Olha, meu ritmo de vida é esse. Vou te responder, mas à noite provavelmente não. Se for alguma coisa urgente, me ligue”.
As pessoas vão começar a entender que esse é o seu jeito e passam a respeitar. Daqui a pouco, vão se dar por conta de que é inadequado mandar mensagens a essa hora da noite. Ou podem até mandar, mas não devem ter a expectativa de que você vá responder.
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Embora o mindfulness seja uma prática de meditação baseada na ciência difundida desde o final dos anos 1970, muita gente ainda tem dúvidas sobre o tema. Poderia explicar o que é?
Tem estudos que mostram que em 47% do tempo nossa mente está no passado ou no futuro. Isso é importante para a evolução da nossa sociedade, pois nos permite, por exemplo, planejar o futuro. Por outro lado, trouxe um custo emocional muito grande. As pessoas olham para o passado e pensam: "Por que tomei aquela decisão? Se tivesse feito diferente, minha vida seria bem melhor hoje".
Algumas pessoas têm uma tendência cognitiva de ir mais para o passado, por isso têm uma vulnerabilidade maior à depressão. Outras têm uma tendência de ir mais para o futuro, o que está ligado a uma vulnerabilidade maior para ansiedade.
Eu, por exemplo, tenho uma tendência de ir mais para o futuro. Por isso me dei conta, quando estava na faculdade, que tinha que aprender ferramentas para lidar melhor com isso.
Aí entra o mindfulness?
Isso. De maneira geral, podemos entender o mindfulness como um treinamento da mente para estarmos mais no presente. A boa notícia é que essa capacidade, chamada de traço psicológico, é 30% genética e 70% ambiental, ou seja, pode ser treinada. Você pode se tornar melhor nessa habilidade, assim como pode treinar o cérebro para aprender uma língua nova ou um instrumento musical.
Mindfulness é um tipo de meditação, mas não apenas isso, correto?
Isso. Mindfulness pode significar três coisas: um estado mental ou psicológico em que a minha atenção está 100% no momento presente, uma técnica meditativa e um traço psicológico.
Como tudo isso se une? Eu treino repetidamente esse estado mental de mindfulness através das técnicas meditativas e de práticas específicas para que isso vá se tornando traço psicológico, um característica mais estável da minha personalidade, ou seja, para que eu seja uma pessoa cada vez mais mais mindful, presente e consciente no meu dia a dia.
Você pode se tornar melhor nessa habilidade (de meditar), assim como pode treinar o cérebro para aprender uma língua nova ou um instrumento musical
MARCELO TROMBKA
Psiquiatra
Ou seja, ter atenção plena à vida.
Exato. As pessoas me dizem: "Quando viajo, parece que fico mindful". Mas não precisamos ir para os Himalaias para ficar assim.
O Jon Kabat-Zinn (professor emérito de Medicina da Universidade de Massachusetts e pioneiro do mindfulness) falou que nossa iluminação contemporânea não é se desconectar do mundo, não é ter um nirvana. Pelo contrário, é estar mais presente, mais consciente na nossa vida, mais conectado com o que realmente importa.
Ele diz que mindfulness é a consciência que surge ao prestarmos atenção, intencionalmente, no momento presente, sem julgamentos. Fazemos esse treinamento para cada vez mais nos relacionarmos com o momento presente com abertura, aceitação, curiosidade e gentileza.
Você mencionou que essa atenção plena pode ser treinada. Como isso ocorre?
A ciência fala em plasticidade cerebral ou neuroplasticidade. É o entendimento de que nosso cérebro é esculpido, inclusive estruturalmente, de acordo com as experiências que temos.
Não somos vítimas do passado. Podemos recriar nossa mente, nossa realidade, dia após dia. Isso chancela nossa liberdade, nossa autonomia, e ao mesmo tempo traz responsabilidade. Somos responsáveis pela maneira como tratamos nosso cérebro.
É uma mudança de paradigma em relação ao que se acreditava no passado?
Antigamente se achava que a plasticidade cerebral acontecia somente até os 25 anos de idade. Hoje, sabemos que o nosso cérebro é plástico por toda a vida. Temos 100 bilhões de neurônios. Cada neurônio se conecta com até outros 7 mil neurônios. São 700 trilhões de sinapses e podemos criar novas conexões o tempo inteiro.
Tem estudos mais recentes que mostram que podemos inclusive criar novos neurônios em algumas regiões do cérebro, o que chamamos de neurogênese. Isso significa que podemos desenvolver novas habilidades a vida inteira.
Cada vez mais se entende que o bem-estar é uma habilidade. Podemos nos tornar melhores em ter mais qualidade de vida
MARCELO TROMBKA
Psiquiatra
O que a ciência tem a ensinar sobre a felicidade?
"Bem-estar" é um termo de que gosto um pouquinho mais. Existem quatro habilidades principais relacionadas ao bem-estar, segundo o pesquisador Richard Davidson. São habilidades que exibem neuroplasticidade, ou seja, podem ser reforçadas, treinadas e melhoradas por qualquer pessoa. Essas habilidades são mindfulness, as habilidades focadas em conexão, insight (ou autoconhecimento) e propósito.
Tem um estudo publicado pela pesquisadora Amishi Jha, da Universidade de Miami, que mostrou que com 12 minutos de mindfulness por dia, cinco vezes por semana, já ocorrem alterações muito importantes em várias estruturas cerebrais. São coisas simples, práticas, que podem trazer um benefício enorme. E não é nada místico, nada religioso. Está disponível para todo mundo.
Estamos condicionados pelos filmes e livros a pensar na felicidade como algo que um dia se alcança e dura para sempre. O que muda quando substituímos isso pela ideia de bem-estar?
Antigamente, acreditava-se que a nossa felicidade era determinada pelos deuses ou pelo destino. Com o desenvolvimento da neurociência e do ramo que chamamos de psicologia positiva ou psiquiatria positiva, cada vez mais se entende que o bem-estar é uma habilidade. Podemos nos tornar melhores em ter mais qualidade de vida.
A felicidade certamente não é um momento, é um processo. Está muito mais dentro da gente do que fora. Se eu achar que a felicidade está na próxima promoção no trabalho, na próxima viagem, na próxima compra, estarei sempre insatisfeito. É uma satisfação que dura pouco. Precisamos encontrar o equilíbrio entre o ser e o ter.
Nossa vida é uma megamaratona de 80 anos. Não existe um pote de ouro no final do arco-íris, o negócio é curtir o processo. Esse é um ponto importante para desmistificar a felicidade.
Isso tem a ver com a diferença que certa vez você mencionou entre uma vida baseada em metas e uma vida baseada em valores. Poderia explicar?
Uma vida baseada em metas é aquela em que estou atrás de algo que eu possa riscar de uma lista. Pode ser ir para a Disney, ter um filho, comprar um carro. Já os valores são como uma bússola, é o que me guia para chegar aonde quero. Os valores são individuais, não tem certo ou errado.
Como podemos transformar uma vida baseada em metas em uma vida baseada em valores?
Vou dar um exemplo. Tenho um paciente que estava trabalhando muito para comprar um apartamento para o filho. Aí começamos a tentar descobrir que valor estava por trás dessa meta e descobrimos juntos que era ser um pai amoroso.
Talvez ele não fosse conseguir dinheiro para comprar um apartamento para o filho, pois isso depende de vários fatores, mas poderia começar a viver hoje de acordo com o valor de ser um pai amoroso e ter uma satisfação imediata.
Hoje, estamos vivendo muito uma vida baseada em metas. Parece que estamos vivendo as metas que as outras pessoas nos colocaram.
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Qual é a queixa que os pacientes mais levam ao seu consultório?
Ansiedade é o principal motivo de procura a consulta em psiquiatria tanto no meu consultório quanto no Brasil e no mundo. Estamos vivendo uma epidemia de ansiedade.
Por que as pessoas estão ansiosas?
É importante esclarecer que nem toda ansiedade é ruim. A ansiedade começa a ser um problema quando é muito intensa ou muito longa e começa a fazer com que a vida dessa pessoa não floresça.
Não existe ninguém que não tenha ansiedade. O problema está em deixar de fazer coisas que são importantes para nós para não sentir ansiedade. Digamos que seja importante para mim ter um trabalho significativo e hoje eu tenha um trabalho que não esteja me preenchendo. Se eu buscar outro trabalho, vou ter que passar por uma entrevista de emprego, talvez vá diminuir minha renda, e tudo isso vai me gerar ansiedade.
Mas então eu acolho essa ansiedade, porque está alinhada com meus valores e estou indo em direção a uma vida mais rica, plena e significativa. Se eu ficar no mesmo trabalho, também me sentirei ansioso.
Então, tenho que escolher entre a ansiedade que me aproxima de uma vida rica e a ansiedade que está deixando minha vida paralisada.
Hoje, estamos vivendo muito uma vida baseada em metas. Parece que estamos vivendo as metas que as outras pessoas nos colocaram
MARCELO TROMBKA
Psiquiatra
Hoje parece haver uma pressão para sermos produtivos a todo custo. Tem inclusive um bordão que faz parecer que devemos nos sentir culpados ao descansar: "Trabalhe enquanto os outros dormem". Como lidar com esse tipo de cobrança?
Setenta e oito por cento das pessoas são mais gentis com os outros do que com elas mesmas. Isso é um aspecto muito forte na nossa sociedade: estar muito preocupado com o que os outros vão pensar da gente.
Por isso, é importante falar da autocompaixão, que também é algo que podemos treinar. Tem estudos que mostram que as pessoas mais autocompassivas são as que mais atingem seus objetivos. Se estivermos bem conosco mesmos, atentos às nossas necessidades, vamos curtir muito mais o processo e possivelmente teremos melhores resultados.
Quais são os desafios da psiquiatria hoje?
Por muito tempo, o objetivo da psiquiatria era focar apenas no sofrimento, na doença. Acho que nossa responsabilidade na psiquiatria não é só aliviar o sofrimento, mas também ajudar as pessoas no caminho de uma vida rica, plena e significativa.
Para fazer uma comparação: o objetivo da medicina não é só que a pessoa não tenha doença; é que ela tenha uma saúde excelente. Isso vai retardar o momento de ela ter uma doença por 20 ou 30 anos. E se tiver uma doença, provavelmente não vai ter um impacto tão grande. É a mesma coisa com a saúde mental.
A vida tem altos e baixos. Eventualmente, a gente perde um familiar, termina um relacionamento, tem um problema financeiro. Como nos tornamos mais resilientes? Desenvolvendo essas habilidades de regulação emocional, de mindfulness, habilidades do bem-estar, para lidar melhor com os desafios que vão surgindo.
Tenho que escolher entre a ansiedade que me aproxima de uma vida rica e a ansiedade que está deixando minha vida paralisada
MARCELO TROMBKA
Psiquiatra
Como foi criado o Instituto Brasileiro de Bem-Estar e Mindfulness (Ibem)?
Fui pesquisar de que forma eu conseguiria oferecer algo que fosse relevante, causasse impacto, ajudasse as pessoas a viver melhor e que, ao mesmo tempo, fosse sustentável a médio e longo prazo. E que também tivesse um senso de comunidade. Assim surgiu o Ibem.
Eu via as pessoas tentando descobrir sozinhas os caminhos para o bem-estar em grupos de meditação ou em TED Talks e pensei que tinha que ter uma curadoria de cursos, conhecimento, atividades, comunidade, de uma forma estruturada, fácil e descomplicada.
Então, conversei com colegas que toparam participar e gravaram práticas e master classes. Não queria que fosse apenas eu. Queria mais pessoas juntas, com seus conhecimentos, para a gente poder, de fato, entregar algo de qualidade, de forma ética, sustentável e baseada na ciência.
As atividades ocorrem no ambiente virtual pra chegar a mais pessoas?
Isso. Vimos que uma das maiores dificuldades das pessoas era a questão do tempo, então tentamos criar uma série de recursos que pudessem se adaptar às necessidades das pessoas.
Algumas pessoas têm necessidade de interagir, de ter encontros virtuais ao vivo. Outras preferem fazer as atividades sozinhas, sem precisar interagir. Tentamos olhar para as necessidades de todos.
Temos na plataforma toda a parte gravada para quem eventualmente está em um momento mais introspectivo. Por exemplo, tem um curso de seis semanas de mindfulness e bem-estar.
Toda semana a gente entra ao vivo, guia uma prática e propõe momentos de interação. E temos mais de 60 meditações gravadas. As práticas ao vivo ficam gravadas para quem não pode entrar no dia.
E temos um evento grande por mês, que são as master classes, em que convidamos um especialista em algum tema ligado a bem-estar e qualidade de vida para dar uma aula ao vivo pelo Zoom.