Alunos se interessavam tanto pelo conteúdo das aulas de Carla Tieppo sobre o cérebro humano que repassavam o que aprendiam às famílias. Logo a neurocientista, que é professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo desde 1995, passou a ser demandada por parentes de estudantes curiosos sobre como aplicar aquele conhecimento no dia a dia. Por isso, cursos de neurociência para leigos foram abertos por ela – e fizeram sucesso.
Muitos dos que a procuravam eram do mundo corporativo e da educação, o que fez a neurocientista perceber que há muitas pessoas desejosas em aprender como usar a ciência do cérebro para melhorar a vida e produtividade em escolas, empresas e organizações. Sem deixar a vida acadêmica, ela, que é médica veterinária de formação e doutora em Farmacologia pela Universidade de São Paulo (USP), abriu uma consultoria e hoje ajuda de educadores do ensino básico a executivos nesse objetivo.
Carla será palestrante no Sesi Conecta Saúde, evento que nesta terça e quarta-feira (9 e 10/5) vai refletir sobre o futuro da saúde no trabalho (leia detalhes sobre o evento ao final da entrevista).
Quais as contribuições que a ciência pode dar para a saúde no trabalho?
Precisamos dessas contribuições especialmente por conta da pandemia e já porque, antes dela, vínhamos enfrentando uma ruptura da saúde mental devido à volatilidade, aos estímulos dessa modernidade líquida, ao modelo de uma vida pouco estável. Isso tudo afeta muito a dinâmica do sistema nervoso. Nosso cérebro é um órgão de predições, que procura o tempo todo tentar adivinhar o que está por vir. Em um mundo instável, essa capacidade se fragiliza porque não conseguimos acertar nossas previsões. E isso é fonte de ansiedade. Somado a outros aspectos de satisfação humana, não só a relação com o trabalho, isso também agrava quadros de depressão. Na neurociência, criamos modelos de intervenção para promoção de saúde mental e também de prevenção dessa ruptura e adoecimento. A abordagem é: como o ambiente de trabalho, a vida cotidiana e as relações podem ficar melhor estruturadas para os impactos dessa modernidade líquida? Na minha palestra, vou trazer conteúdos sobre nossos vícios contemporâneos, redes sociais, alimentação não saudável, sedentarismo, desejo de se manter estável em uma condição sem esforço e o apelo dos confortos da sociedade contemporânea, que nos leva a hábitos ruins. A neurociência nos inspira a novas formas de viver, a construir hábitos, prevenir e proteger a nossa saúde mental.
Que hábitos ruins são esses?
O primeiro elemento é como você gerencia seu sistema emocional. Temos a cultura de achar que as emoções são fonte de vulnerabilidade. Dizem: você precisa ser mais racional, tomar decisões racionais, controlar essas emoções e isso tem nos levado a agir com elas de forma improdutiva. As emoções, na verdade, revelam como avaliamos nosso entorno e como atribuímos valor e potência ao que nos acontece. Se eu sofrer um assalto, vou ter uma descarga emocional com adrenalina e cortisol que produz uma série de efeitos no meu corpo. Ainda que isso pareça sofrimento, é por causa disso que, depois do episódio, tomarei mais cuidado nas circunstâncias em que estarei sob ameaça. As emoções validam e geram memória para nos proteger no futuro, mas vivemos em ambiente hostil onde, ainda que tenhamos as informações necessárias sobre o que é perigoso e deve ser evitado, temos que trabalhar, ir à rua e manter contato com coisas que nos deixam vulneráveis, com raiva, medo ou ansiedade. No lugar de varrer emoções para debaixo do tapete, elas sinalizam para você o que não vai bem, e, a partir disso, se intervém nessas circunstâncias buscando corrigi-las. Se não, chega-se ao ponto dramático do desenvolvimento do pânico. Se você está no trabalho e lá você não tem o devido reconhecimento de esforço e empenho ou se sente injustiçado, isso produz uma porção de emoções de menos valia e pertencimento. Vira um círculo vicioso, com menos engajamento, produtividade e reconhecimento. E aí você não produz os neurotransmissores que sinalizam bem-estar. Quando não tenho isso, há uma ruptura que pode levar a um quadro de depressão. Deve-se pensar o que posso fazer cotidianamente antes que o corpo chegue ao limite. A maioria das pessoas afoga as emoções, não quer lidar com elas e, por causa disso, só vai ter o efeito da emoção quando estiver próxima de um quadro que pode levar a adoecimento físico e mental. Devemos usar as emoções em nosso benefício, aprender com elas, como se fossem dados a nosso respeito, de onde está o fluxo do nosso sofrimento e da nossa não adequação, de modo que isso não vá se acumulando.
Nossa sociedade saiu da lógica da escassez para uma lógica da abundância, só que mantivemos os mecanismos cerebrais de escassez, uma vez que o cérebro não se alterou. Essa mudança social faz com que consumamos muito mais do que precisamos. Há muita oferta de estímulos entendidos como recompensas pelo cérebro, que trazem resultados imediatos e de valia para meu sistema nervoso e podem virar vícios.
Na sua palestra, a senhora fala de vícios contemporâneos. Quais são eles?
O cérebro tem um modelo funcional desenvolvido na savana africana, quando ainda estávamos em evolução natural. A lógica era a da escassez, em que faltava abrigo, conforto e alimento. Nós tínhamos que trabalhar para garantir um lugar seguro para dormir, alimento de qualidade e vínculos sociais que validassem minha existência. Hoje, nós não evoluímos mais (no sentido biológico) porque nossa espécie não sofre mais essa pressão evolutiva, em que apenas os mais adaptados à natureza se reproduzem, há 50 mil anos. Nossa sociedade saiu disso para uma lógica da abundância, só que mantivemos os mecanismos cerebrais de escassez, uma vez que o cérebro não se alterou. Essa mudança social da escassez para a abundância faz com que consumamos muito mais do que precisamos, do alimento ao entretenimento. Há muita oferta, seja pelas redes sociais ou pela pornografia, de estímulos entendidos como recompensas pelo cérebro, que trazem resultados imediatos e de valia para meu sistema nervoso e podem virar vícios. Nessa medida, sofremos de um estreitamento de repertório, uma condição em que o indivíduo só pensa ou se engaja em tarefas associadas ao vício. É o indivíduo que, por exemplo, começa a apostar online, uma área que chama muita atenção de quem trabalha com vícios. O apostador consegue naquilo ter recompensas imediatas de grande valor para o cérebro. Nas apostas, ganhar poucas vezes muito e perder muitas vezes pouco parece compensar, porque o cérebro dá mais valor para o ganho do que para a perda. O pior quadro de vício começa desse jeito, até que o prazer que se tinha com o estímulo vai diminuindo de intensidade até a pessoa se sentir mal na sua ausência.
Seu trabalho pode ser considerado uma divulgação científica para o mundo da educação e dos negócios?
A neurociência tem uma porção de aplicações no ambiente educativo e corporativo que dizem respeito à dinâmica comportamental. A entrada da inteligência artificial, por exemplo, é fonte de abalo para as pessoas. Se elas não estão se preparando para esse mundo de mudanças, estão ameaçadas de perder o emprego ou serem substituídas por máquinas. Há hoje uma crise de liderança, com uma transformação no processo de liderar. Não se aceita mais o comando e o controle que geram diretrizes de comportamento. Por isso, precisamos de um novo modelo ao qual ainda não chegamos, um modelo que tenha visão das necessidades humanas, de como o indivíduo precisa ser tratado para que haja alta performance. Fora daquela ideia antiga de que as pessoas só chegam ao alto rendimento quando são chicoteadas e depois recompensadas. Meu trabalho com neurociência atua tanto na formação de lideranças como no bem-estar nas organizações, bem como a adoção dos processos de inovação, que são importantes como recursos para se manter viável no mercado.
Há uma crise de liderança, com uma transformação no processo de liderar. Não se aceita mais o comando e o controle que geram diretrizes de comportamento. Precisamos de um novo modelo que tenha visão das necessidades humanas, de como o indivíduo precisa ser tratado para que haja alta performance.
Na área de negócios, a neurociência está na ordem do dia. Há também muita má ciência sendo adotada e replicada no ambiente corporativo?
O conhecimento neurocientífico é algo que o indivíduo precisa se debruçar sobre para ter consistência. Se me perguntarem: Carla, se eu começar a estudar hoje, em quanto tempo poderei aplicar a neurociência em consultorias de negócios? Eu diria de cinco a 10 anos. As pessoas não estão dispostas a estudar por muito tempo, então elas ouvem conhecimentos rasos como dogmas, sobre como o cérebro usa comportamentos automáticos para economizar energia, por exemplo. São distorções. Têm base, não é mentira, mas a conclusão é falaciosa. As pessoas falam que o cérebro gasta muita energia, que quando penso muito preciso me debruçar sobre as coisas para trazer soluções e aí me sinto cansado. Esse cansaço não tem a ver com energia, mas com o foco atencional. E o ambiente organizacional é afeito a isso porque as pessoas querem um ferramental de fácil aplicação. Não querem saber o porquê, nem o como. Elas têm um problema, querem resolver e buscar um passo a passo. Há gurus que criam passo a passo em cima dessas falácias. Como não se checa o porquê daquilo, é aplicado. E aí as pessoas aplicam, não funciona e depois se sentem culpabilizadas, perdedoras. Isso não acontece só na neurociência. Hoje há muita gente com pressa para se formar e rapidamente ganhar dinheiro com o conhecimento da moda. A inteligência artificial, o futurismo e a física quântica estão sofrendo isso. A neurociência é complexa, dizem que só é comparável em complexidade com a astrofísica. É muito difícil partir de uma análise do funcionamento do cérebro para chegar à conclusão de como ele vai reagir a um estímulo. Na academia, usamos dados científicos, montamos experiências, testamos e, a partir dos resultados, buscamos relações de causa e consequência. Não é simples, mas há muitos gurus de palco que vão militar nessa área para lhe dar 10 dicas sobre o cérebro.
Outros cientistas torcem o nariz por você se dedicar à divulgação da neurociência?
Sempre acontece. Precisamos simplificar a linguagem, e o preciosismo acadêmico acredita que não é viável informar leigos com qualidade sem dar uma formação profunda. Essa aposta de que podemos fazer mudanças no mundo a partir de um olhar que não é simplista, mas simplificado frente à complexidade ofende um pouco a academia. O cuidado é não simplificar a ponto de passar o que está equivocado por ser mais fácil do que o certo. Minha grande especialidade é traduzir o complexo em simples, esse foi meu desafio na academia desde sempre. Ao ser professora do Ensino Superior nos primeiros anos, lidei com pessoas recém egressas do Ensino Médio, então recebi alunos contaminados por erros de formação. E aí se faz essa correção sem afastá-los do conhecimento. É preciso unir mundos, entre o do especializado e o do iniciante na área, e o maior desafio é traduzir isso na linguagem.
Há muita gente com pressa para ganhar dinheiro com o conhecimento da moda. Na academia, usamos dados científicos, montamos experiências, testamos e, a partir dos resultados, buscamos relações de causa e consequência. não é simples, mas há muitos gurus de palco que vão lhe dar 10 dicas sobre o cérebro.
Como o uso da neurociência pode ajudar na educação para professores dos primeiros anos?
É natural que as pessoas pensem que a neurociência vai entrar na discussão sobre educação na perspectiva dos distúrbios, dificuldades e transtornos. Na verdade, a aplicação da neurociência pode se dar em um nível da compreensão do funcionamento de um cérebro considerado neurotípico, até porque neurotípico mesmo ninguém é. Todos nós temos nossas próprias maneiras de aprender e encontrar significados. Somos todos únicos. A neurociência ajuda a compreender os mecanismos que promovem uma maior fixação de conteúdos, instigação, curiosidade, percepção de valor, trabalham os mecanismos de memória, que são diversos, utilizar todo o potencial de um cérebro humano. Estudamos como as diferentes memórias, habilidades e competências são desenvolvidas. Pedagogia e psicologia fazem o mesmo, mas a partir de outros métodos. Não é porque a neurociência tem similaridade com a neurologia que ela se preocupa só com o distúrbio. Ela sabe discuti-los porque entende os mecanismos básicos por trás disso, mas esse não é o único objetivo. O principal é essa abordagem de mecanismos de apresentação, fixação e recordação de conteúdos que tenham base em dados obtidos em experimentos controlados. A neurociência não quer ser soberana, nem impor visões.
A senhora pode dar um exemplo prático?
Um desafio importante dos primeiros anos é a alfabetização. E, se você souber como os circuitos cerebrais estão sendo formados, quais elementos fomentam esses circuitos, você pode dar ênfase na parte certa e apresentar à criança um olhar mais compatível com a forma que o cérebro vai qualificar aqueles estímulos. O método fônico, por exemplo, quando bem aplicado, tem sua referência na neuropsicologia. São dados, evidências, de que se você usar um método mais compatível com a forma que o cérebro aprende há mais chance de menos alunos apresentarem dificuldades de alfabetização. Hoje, os números educacionais são desastrosos.
Por quê?
No país, a fama é que temos vários problemas, tanto de alfabetização quanto de letramento matemático. Os números são ruins, especialmente no pós-pandemia, então precisamos ter intervenções que tragam um encaminhamento compatível com a forma com que o cérebro constrói isso. Hoje sabemos quais são as áreas cerebrais usadas para codificar o formato das letras com seu som e seu significado. Obviamente as pessoas podem ser alfabetizadas de muitas formas diferentes, mas elas precisam contar com mecanismos atencionais satisfatórios. E temos uma crise nesse sentido. As crianças têm dificuldade para se debruçar em um conteúdo que não está em um game ou em um desenho. Se não, elas dificilmente param para interagir. As que param, se alfabetizam, mas como temos essa crise, aspectos sociais e econômicos vão requerer uma intervenção mais profunda.
De que modo a Senhora encara a inteligência artificial no mundo do trabalho e da educação? A IA de fato têm a capacidade de substituir empregados a professores?
A pergunta é cheia de variáveis. Algumas delas concorrem entre si: principalmente custo e desenvolvimento versus economia de recursos. Por exemplo, se eu fizer uma IA capaz de substituir uma consulta médica com qualidade, isso interessa porque ela custa caro para o sistema de saúde. Agora, se ao barateá-la, e os médicos continuarem consultando por valores mais baixos, você não vai investir aquela grana toda porque o custo da mão de obra vai ficar mais barato a ponto de não valer a pena implementar uma tecnologia cara para ser desenvolvida. Hoje, as pessoas já sabem que os dados que elas têm são valiosos e vão começar a cobrar para ensinar as tecnologias de IA. As pessoas se perguntam se elas vão substituir humanos, mas a nossa inteligência já opera de uma determinada forma que obviamente é eficiente, se não não teríamos chegado onde chegamos. Há um conjunto de dados e operações dentro da IA que ninguém sabe bem como são e o que são capazes de fazer. Não obrigatoriamente é uma inteligência igual a nossa. Ela pode se desenvolver de diferentes formas, e é por isso que as pessoas estão com medo, já que não sabem ao certo o que é o possível. Mas não deve acontecer nada muito de ficção científica, guerra ou dominação. Isso não. Já no mundo do trabalho há um remelexo, uma revoluçãozinha. Na melhor das hipóteses, isso vai gerar uma maior produção de riqueza, mais ou menos como se fosse uma forma de produção de energia mais barata, que gera uma disrupção no modelo econômico. Isso muda todo o jogo. Ou como uma medida em que as pessoas vão poder trabalhar menos. Acho que todos gostariam dessa saída, se ela for possível. Professores? Não vão ser substituídos se forem curadores, mentores, mediadores, aconselhadores, mas, se for só para compilar conhecimento, empacotar e entregar, pode ser que sim.
E lideranças, gestores, podem ser substituídos?
Acho que demora um pouco. Ou demora, ou o ser humano vai gostar de receber ordens de um robô. É uma possibilidade, não? “Me fala o que tenho de fazer para entregar valor aqui e depois disso me deixa em paz”. Se falamos de variáveis e possíveis caminhos, tem engajamento no cérebro humano para todas essas vertentes.
Qual a grande contribuição da neurociência para os negócios e a educação?
Devemos partir da neurociência para influenciar as práticas de liderança. Ter líderes conhecedores do cérebro, que façam um mergulho no cérebro sem necessariamente entrar em meandros tão complexos. Essa liderança pode extrair o melhor das pessoas sem impactá-las com níveis de estresse insuportáveis. Aliar saúde mental e física à produtividade: a neurociência ajuda a explicar como construir um ambiente propício a isso.
O Sesi Conecta Saúde
- A edição 2023 será nesta terça e quarta-feira (9 e 10/5), com atividades presenciais e online, reunindo diversos especialistas em saúde no trabalho.
- Além de Carla Tieppo, participam Fernando Torelly, Reinaldo Bulgarelli, Fernando Akio, Augusto Cury, entre outros.
- As inscrições são gratuitas. Saiba mais em sesiconectasaude.com.br.