A falta de um medicamento utilizado contra um dos cânceres mais comuns na infância vem preocupando pais, especialistas e entidades desde outubro no Brasil. Chamado de Mercaptopurina, o remédio é um quimioterápico via oral, que faz parte do tratamento da leucemia linfoide aguda – que afeta principalmente crianças. Conforme relatos, já há desabastecimento em farmácias e hospitais do país, o que tem gerado a aflição de algumas famílias.
No Brasil, o medicamento é distribuído pela farmacêutica Aspen Pharma, com o nome comercial de Purinethol. De acordo com a Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), a empresa informou o risco de desabastecimento da droga no dia 13 de outubro.
Em nota enviada à entidade, a empresa explicou que a fabricação da Mercaptopurina é feita por uma farmacêutica da Alemanha e que o fornecimento de uma das substâncias utilizadas na produção foi interrompido. Por isso, foi necessário fazer uma alteração na formulação do medicamento. Essa alteração, por sua vez, já era aprovada e implementada desde 2018 em mais de 40 países, mas não no Brasil.
O texto da Abrale afirma que, até 27 de outubro, ainda não havia sido possível obter a aprovação no país, “uma vez que os resultados apresentados no estudo de bioequivalência não atenderam os requisitos estabelecidos na regulamentação brasileira”, e reproduz a nota da Aspen Pharma:
“Enquanto não se regulariza a situação e de forma a evitar o desabastecimento do mercado, a Aspen Pharma solicitou uma autorização excepcional para importação de 23.000 unidades do medicamento Purinethol®, registrado e comercializado na Alemanha, para abastecimento emergencial do mercado. Essas unidades já se encontram no Brasil e necessitam da autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para liberação e comercialização, visto se tratar da nova formulação, ainda não aprovada no país. Cientes da criticidade da situação, estamos em contato com as autoridades para que essa liberação ocorra o mais breve possível, principalmente, pelo esgotamento do estoque e vencimento das unidades remanescentes no mercado, em 31 de outubro 2022”.
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No mesmo texto, a Abrale manifesta preocupação e garante que encaminhou um ofício para a Anvisa, solicitando informações sobre essa autorização e pedindo a ampliação da validade dos lotes que expirariam no final do mês passado.
Na última sexta-feira (11), a entidade publicou uma nova nota, informando que a Agência havia autorizado a liberação dos lotes importados da Alemanha, “condicionada à apresentação de alguns documentos, incluindo um plano de minimização de risco, com acompanhamento ativo dos pacientes que receberem a nova formulação”, e que a documentação já estava sendo preparada. O texto ressaltava, contudo, que o trâmite de liberação ainda poderia demorar e que, até aquele momento, os pacientes estavam sem acesso.
Em nota enviada à reportagem de GZH nesta segunda-feira (14), a Aspen Pharma informou que, no sábado (12), “a Diretoria Colegiada da Anvisa autorizou a ampliação do prazo de validade para 48 meses dos lotes 8155, 8156, 8157 e 8158 do medicamento Purinethol (Mercaptopurina), comprimido de 50 mg”. Assim, os pacientes que ainda possuírem os remédios desses lotes poderão utilizá-los até 31 de outubro de 2023, independente da data impressa na embalagem, segundo a farmacêutica.
Além disso, a empresa esclareceu que, conforme ofício recebido também em 12 de novembro, as condições previstas “para autorização excepcional do medicamento Purinethol (importado da Alemanha e rotulagem em idioma estrangeiro) foram atendidas e os mesmos já podem ser liberados para comercialização e uso pelos pacientes”. A Aspen Pharma ressaltou que já iniciou as ações para distribuição e abastecimento do mercado. “No entanto, por determinação da Anvisa, o medicamento importado da Alemanha não poderá ser comercializado em farmácias e drogarias. Somente em hospitais e serviços de saúde”, diz outro trecho da nota.
Um documento publicado no site da Anvisa no início deste mês corrobora a afirmação da farmacêutica sobre a liberação dos lotes importados do medicamento, em caráter excepcional. Consultada para mais detalhes sobre o assunto, a agência não retornou até o fechamento desta reportagem.
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Entretanto, de acordo com a Aspen Pharma, ainda não há previsão para entrega nos distribuidores – o que representa um grande problema para os pacientes que dependem da medicação. E Yuri Bittencourt Soares, seis anos, é um deles. Diagnosticado com leucemia linfoblástica aguda em junho de 2021, o menino faz um tratamento de manutenção com essa droga desde abril deste ano.
A mãe, Marta Rejane Bittencourt Soares, 46 anos, explica que o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), onde o Yuri faz acompanhamento, disponibilizava o remédio até outubro, quando os pais foram informados sobre a falta da medicação nas farmácias. A gaúcha conta que o filho só terá comprimidos até quarta-feira (16) e que, desde que foi informada sobre o desabastecimento, busca maneiras de encontrar o medicamento, que o menino não pode deixar de tomar.
É um remédio caro, eu estou fazendo rifa para juntar dinheiro, mas nem tem onde comprar
MARTA REJANE BITTENCOURT SOARES
Mãe do Yuri, de 6 anos, que se trata leucemia linfoblástica aguda
— É muito importante para eles. O Yuri toma todos os dias esse remédio. Ainda não faltou, vai terminar na quarta-feira, mas tem crianças que já estão sem lá no hospital. Hoje ele teve consulta de manhã e o médico disse que não tinha nem previsão, porque era em todo o Brasil. É um remédio caro, eu estou fazendo rifa para juntar dinheiro, mas nem tem onde comprar — afirma Marta.
Ela relata também que o filho anda muito cansado, por isso, está com medo de que ele piore por ficar sem o medicamento:
— É um desespero total, porque é a vida do meu filho. Eu não consigo dormir à noite, preocupada com isso, é uma agonia. Minha esperança é que venha essa medicação de uma vez, porque não é só o meu filho, são várias crianças que estão nessa situação.
Por volta das 19h30min desta segunda, a assessoria do Hospital Universitário de Santa Maria informou à GZH que o estoque do medicamento foi regularizado temporariamente e estará disponível pelos próximos dias, mas que há um problema com o fornecimento em todo país. A instituição não conseguiu confirmar com a equipe médica se já havia pacientes sem acesso ao remédio.
Entenda a dimensão do problema
Laura Garcia de Borba, hematologista do Serviço de Oncologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, garante que, pelas informações repassadas ao setor, trata-se de um problema que abrange todo o Brasil. A especialista esclarece que o quimioterápico faz parte dos protocolos de tratamento da leucemia linfoide aguda, que afeta principalmente as crianças, sendo a neoplasia mais frequente na infância, mas também em adultos, em menor proporção.
Segundo a médica, todas as crianças diagnosticadas com a doença dependem dessa medicação no decorrer do tratamento. O remédio é utilizado em algumas fases iniciais e, depois, mais fortemente na fase de manutenção, onde se usa quimioterapia em dose menor, mas por um tempo maior, de forma contínua. Além disso, não há um medicamento substituto:
— Existe uma medicação da mesma classe, a tioguanina, que não é exatamente a mesma medicação, mas teria a possibilidade de substituição do protocolo de tratamento. No entanto, também não é uma medicação que se tenha neste momento em grande quantidade para comprar. Nós tentamos na Santa Casa e não conseguimos o suficiente.
Laura explica que o maior medo dos pais e especialistas é pelo risco de recidiva da doença, especialmente para as crianças que estão em fase de manutenção, como Yuri.
— É um problema enorme. Atualmente é o assunto mais comentado na área de oncohemato pediátrica principalmente, porque afeta muito o público pediátrico. Então, a nossa preocupação é que, as leucemias na infância têm uma chance de cura de 90%, um número muito alto, mas que é baseado no tratamento correto. As chances caem bastante se tiver uma falha no tratamento que gere a chance de a doença voltar, porque toda vez que tem uma recidiva, a doença vem mais agressiva e com chance bem inferior de se colocar em remissão de novo — alerta.
Só no Santo Antônio, cerca de 25 crianças serão afetadas diretamente com o problema. A especialista afirma que o hospital não tem mais nenhum estoque da medicação do lote que estenderam o prazo de validade para uso. Assim, já há pacientes que ficarão sem o remédio nesta semana.
Laura esclarece ainda que a tioguanina foi fornecida para alguns pacientes, mas o estoque também acabou. A instituição fez uma nova compra e a previsão de entrega é após o dia 20, portanto, algumas crianças ficarão sem medicação até que o hospital tenha a Mercaptopurina ou o substituto temporário à disposição.
— A farmácia da instituição não está medindo esforços para conseguir adquirir a medicação e disponibilizar assim que possível. Mas infelizmente há essa falta no mercado — lamenta a médica, ressaltando que outros hospitais também não estão conseguindo comprar o quimioterápico.
Segundo a especialista, a informação que a instituição tem é que o processo de importação do remédio que veio da Alemanha foi feito pela Aspen Pharma. No entanto, tendo a aprovação da Anvisa, ainda é preciso saber o prazo do fornecedor e do transporte da medicação até os hospitais, que entregam diretamente aos pacientes. Ela destaca que não se sabe quantos dias esse processo pode levar e estima que mais de cem crianças sejam afetadas no Estado, somando todos os centros de tratamento.
É muito estressante para eles e para as famílias o medo de ficar sem a medicação e o assombroso risco de recidiva
LAURA GARCIA DE BORBA
Hematologista do Hospital da Criança Santo Antônio
Além disso, a médica da Santa Casa ressalta que a solução do laboratório é momentânea e que os pacientes precisam de uma segurança sobre o abastecimento a longo prazo, já que se trata de uma medicação de uso continuado na fase de manutenção do tratamento:
— Essa medicação da Alemanha vem para cobrir o rombo inicial, mas é uma quantidade muito grande de pacientes usando, então é um impacto muito grande. Torço para que o problema seja resolvido o quanto antes para que os pacientes não sejam prejudicados. Nosso medo, assim como o dos pais, é sempre o escape da doença, as tristes recidivas. Esses pacientes já sofrem muito durante todo o tratamento, é muito estressante para eles e para as famílias o medo de ficar sem a medicação e o assombroso risco de recidiva.