Foi graças à reestruturação da equipe obstétrica que o Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) conseguiu reduzir em quase 50% o índice de cortes no períneo durante partos normais, em dois anos. Chamado de episiotomia, o procedimento, realizado na região entre o ânus e a vagina, tem como objetivo facilitar a passagem do bebê em partos normais difíceis, mas pode ser considerado uma violência quando feito sem indicação justificada.
No ano de 2019, quando dados relativos a este procedimento passaram a ser disponibilizados, a maior taxa de episiotomia registrada na instituição de saúde foi de 27,9%, em abril, enquanto, neste ano, o pico foi de 15,2%, em março. A redução no período chega a 45,51%.
Já as médias mensais de nascimentos e de episiotomia no hospital escola em 2019 foram de 76 partos e 16,7% procedimentos. Neste ano, conforme dados computados até novembro, foram de 106 partos e 11,5% de cortes de períneo. A redução, portanto, foi de 5,2%, quando considerada a média mensal de procedimentos.
Patrícia Noguez, enfermeira chefe da Divisão de Gestão do Cuidado do Hospital da UFPel, explica que a instituição assinou contrato com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) em 2014, quando passou a olhar com mais afinco para os serviços de assistência. No ano seguinte, chegaram as primeiras enfermeiras obstétricas, que, desde 2018, estão presentes em todos os turnos da maternidade.
— Também chegaram médicos novos, que vieram com um olhar diferente, pensando em partos mais humanizados, educadores físicos e fisioterapeutas, que também ajudam as mulheres no período pré-parto — relata.
Voltada ao ensino, a instituição conta com uma equipe multidisciplinar, destaca Patrícia, com profissionais específicos, que têm papel relevante nos momentos que antecedem o parto. É o caso do educador físico e do fisioterapeuta, que preparam a mulher para o nascimento do bebê, com exercícios que utilizam bolas de pilates, bandas elásticas e escadas, por exemplo.
A enfermeira chefe também lembra que, em 2018, o hospital participou de um programa de aperfeiçoamento do setor de obstetrícia e neonatologia, em que foram abordados temas como a importância da redução de procedimentos desnecessários no parto. A mudança é lenta, admite Patrícia, mas, aos poucos, apresenta resultados:
— O que nos ajuda é que não é só um movimento do hospital, mas sim das mulheres, que chegam sabendo o que querem, que têm um plano de parto. Tivemos algumas organizações de processo de trabalho para ajudar na acolhida dos desejos dessas mulheres sobre a forma de parir.
Indicação da episiotomia
Jenifer Figueroa, obstetra encarregada da chefia da maternidade do Hospital Escola da UFPel, esclarece a episiotomia não é um procedimento de rotina e só deve ser feita em casos, por exemplo, de exaustão materna, quando a mãe não consegue mais fazer força para o nascimento e o bebê começa a apresentar problemas. A necessidade de intervenção é avaliada na hora da chamada expulsão, quando pode-se avaliar se o períneo da mulher é ou não flexível o bastante para a passagem da criança.
No caso de partos com o uso de fórceps para auxiliar na retirada do bebê, a episiotomia pode ser recomendada para preservar o períneo, evitando lacerações e possíveis complicações posteriores. Patrícia Noguez destaca que, antigamente, muitos cortes eram feitos sem indicação, pois existe uma "cultura de intervenção" na medicina, para fazer os procedimentos da forma mais rápida possível:
— Mas, em partos, tem que ser com mais calma, tem que avaliar com mais tempo, observar o andamento. Para isso, hoje temos profissionais que auxiliam nesse processo.
— Hoje o que se sabe é que, quanto menos procedimentos e intervenções, quanto mais natural a conduta for, melhor. A assistência na obstetrícia é mais fisiológica, só intervemos em situações de real necessidade — complementa Jenifer.
Redução do procedimento em hospitais da Capital
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e o Hospital Nossa Senhora da Conceição também apresentam reduções em seus índices de episiotomia ao longo dos anos. Maria Lúcia da Rocha Oppermann, médica ginecologista e obstetra professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe médica do Centro Obstétrico do HCPA, salienta que há muito tempo existe uma tentativa de reduzir o número de cortes no períneo.
No Clínicas, o índice da intervenção era de 35,6% em 2017, sendo reduzido nos anos seguintes para 26,8% em 2018, 25,4% em 2019 e 21,6% em 2020. Neste ano, entretanto, a taxa sofreu um leve aumento, chegando a 22,5% até novembro.
Para chegar nessa redução, o hospital tem interferido menos nos partos e esperado mais tempo para determinar a necessidade de procedimento, segundo Maria Lúcia. Também tem sido oferecido analgesia às mulheres — quando o anestesista vai injetando doses muito pequenas de anestésico, que reduzem a dor, mas permitem que a paciente caminhe e saia da cama, por exemplo.
No Conceição, a taxa de episiotomia era de 11,33% em 2019. Neste ano, de janeiro a novembro, foi de 4,44%. A enfermeira obstetra Lisete Maria Ambrosi, coordenadora da Linha de Cuidado Mãe-Bebê da instituição, que viu taxas de 70% no início da carreira, ressalta que a mudança não ocorreu de um dia para outro e que o hospital trabalha há muito tempo com a sensibilização da equipe.
A peça-chave para a redução dos números foi o processo de humanização da assistência médica, que vem sendo implementado na instituição desde 2003, quando foi criada a Política Nacional de Humanização (PNH). De acordo com o hospital, são adotadas medidas específicas na maternidade com o intuito de promover o cuidado humanizado e evitar a ocorrência de episiotomia e de lacerações graves. Entre elas, sensibilização e capacitação da equipe para realizar episiotomia de forma seletiva e prevenção de intervenções desnecessárias.
Episiotomia pode ser considerada violência?
O termo violência obstétrica refere-se a qualquer ofensa verbal ou física praticada contra mulheres gestantes, em trabalho de parto ou no período do puerpério, seja por médico, equipe hospitalar ou familiares.
Em 2017, a Defensoria Pública de São Paulo usou a definição dada pelas leis venezuelana e argentina para explicar que esse tipo de violência se caracteriza "pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres".
— O termo nos ajuda a definir as situações em que, de forma desnecessária, sem indicação técnica ou razão clínica, a mulher sofre intervenções no processo de gestação e parto, que retiram sua autonomia e impossibilitam seu protagonismo. São intervenções por vezes desnecessárias, mas que estão na cultura médica, como a episiotomia — esclarece Julia Morelli, médica e diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Mas nem todas as mulheres que passam por esse procedimento sofrem violência, esclarece Julia, já que existem casos específicos em que há indicação. A chefe médica do Centro Obstétrico do HCPA, Maria Lúcia da Rocha Oppermann, faz o mesmo alerta:
— Fico preocupada que as pessoas confundam a episiotomia com violência, como se o médico não tivesse nada para fazer e simplesmente decidisse cortar o períneo. Acho que é violência obstétrica quando o especialista quer abreviar o parto sem indicação, quando ele quer acelerar o parto por desejo próprio, para ir embora logo.
Em seus atendimentos, quando percebe que alguma área pode lacerar no momento da expulsão do bebê, a especialista faz questão de perguntar para a mãe o que ela prefere: a sutura de uma laceração que não se sabe exatamente onde vai aparecer ou o corte no períneo que, depois, é mais fácil de suturar. Já em situações em que o bebê apresenta sinais de que não está tolerando o trabalho de parto, Maria Lúcia informa às pacientes que, para preservar a saúde da criança, precisará fazer uma episiotomia.
Uso do termo não é consenso
A classificação de alguns procedimentos médicos como violência obstétrica faz com que o uso do termo não seja consenso entre entidades e profissionais da área.
Para a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), trata-se de uma expressão "criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros na nobre e difícil tarefa de atendimento ao parto". O maior erro do conceito, segundo a entidade, "é tentar transformar em regra a exceção, dando a impressão de que médicos e enfermeiros habitualmente tratam parturientes de modo violento".
O ginecologista e obstetra Sérgio Martins-Costa, membro da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs) e professor titular de Ginecologia e Obstetrícia da UFRGS, avalia que o termo coloca no mesmo contexto coisas que são muito diferentes:
— Uma coisa é violência de gênero, violência contra a mulher, violência contra a gestante, isso é algo absolutamente inadmissível e a gente concorda que seja tratado no contexto de atitude violenta. Outra coisa, que não deve ser misturada, é a questão das condutas médicas, que podem ser corretas ou erradas. A medicina está sempre evoluindo, o que hoje é considerado uma boa prática, amanhã ou depois pode não ser mais.
Na opinião do especialista, a episiotomia é um exemplo muito claro disso. Martins-Costa salienta que, até o final dos anos 1990, o procedimento era utilizado em cerca de 70% dos casos, pois os médicos acreditavam que ajudava as mulheres e não por violência. Com o avanço de estudos sobre o tema, houve mudança no conhecimento médico.
Desta forma, defende que procedimentos médicos sejam classificados como adequados e inadequados, mas não como violência. Casos em que o obstetra opta por intervenções como episiotomia ou cesárea, com o objetivo de apressar o parto por vontade própria, por exemplo, devem ser tratados como erro médico, diz o obstetra:
— Quando se fala de violência obstétrica, está subentendendo que existe uma categoria profissional que é violenta e isso não é verdade, a grande maioria dos médicos e das enfermeiras obstetras trata muito bem seus pacientes. Mas, às vezes, algumas pessoas são ruins, e aí têm que ser responsabilidade, processadas por erro médico, erro de conduta, essa é a posição que defendemos.