Uma epidemia que já existia antes da covid-19 agora caminha lado a lado com a pandemia de coronavírus e preocupa autoridades e especialistas na área de saúde mental: os transtornos mentais, como depressão e ansiedade, estão impactando a população e poderão colapsar o sistema de saúde, atingindo, inclusive, a economia brasileira nos próximos anos.
O alerta amarelo surge em pesquisas realizadas por universidades e associações, durante a pandemia, e também nos dados mais atuais da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Em 2020, o órgão confirmou recorde de 576,6 mil concessões de auxílio-doença e aposentadorias por invalidez devido a transtornos mentais e comportamentais. Os números são 26% a mais do que os registrados em 2019. Nos dois benefícios, os registros do primeiro ano da pandemia são os maiores da série histórica, iniciada em 2006.
No auxílio-doença, os afastamentos por transtornos mentais, como depressão e ansiedade, tiveram aumento de 33,7%, passando de 213,2 mil, em 2019, para 285,2 mil, em 2020. A alta dos pedidos de auxílio-doença por transtornos mentais superou aquela que costumava ser a campeã da lista: lesões causadas por fatores externos, como acidentes. Já o número de aposentadorias por invalidez concedidas em decorrência de problemas mentais subiu de 241,9 mil para 291,3 mil de 2019 para 2020, um aumento de 20,4%.
Para os especialistas, os números sugerem um efeito da crise causada pela covid-19 que afeta também a saúde física e mental das pessoas de forma generalizada. A Organização Mundial da Saúde projeta que a depressão e a ansiedade serão as primeiras causas de perda de capacidade de trabalho nos próximos 10 anos em todo o mundo. No ano passado, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) já havia identificado a questão da saúde mental nas Américas como uma epidemia silenciosa. Países como Brasil, México e Estados Unidos seriam os mais impactados:
— Metade dos adultos desses países estão estressados por causa da pandemia. Muitos estão usando drogas e álcool, o que pode gerar um ciclo vicioso para as doenças mentais — alertou, na época, a diretora-geral da Opas, Carissa Etienne.
Em termos globais, já há indicadores de que poderão faltar psicólogos e psiquiatras em todo o mundo, incluindo países desenvolvidos. É um legado da pandemia de coronavírus.
VITOR CALEGARO
Psiquiatra, professor da UFSM e coordenador do estudo COVIDPsiq
Para a psicóloga Samantha Sittart, especialista em Psicoterapia Psicanalítica e membro do Grupo de Pesquisa Envelhecimento e Saúde Mental (GPESM-CNPq) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o impacto dos problemas envolvendo saúde mental é percebido desde o inicio da pandemia.
— A privação do ir e vir, do lidar com o desconhecido e saber que há uma ameaça invisível podem gerar sintomas ansiogênicos, tais como crises de pânico, sentir falta de ar com o uso da máscara, oscilações de humor e sintomas depressivos por conta do próprio isolamento social. Temos visto um grande aumento de procura por atendimentos psicológicos e psiquiátricos — explica.
Pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) com associados, nos primeiros meses de pandemia no país, apontou que 67% dos psiquiatras confirmaram o atendimento a pacientes novos no período, a maioria destas pessoas nunca havia apresentado sintomas psiquiátricos. Já 89,2% dos entrevistados destacaram o agravamento de quadros psiquiátricos nos pacientes devido à pandemia de covid-19.
Outro estudo, o COVIDPsiq, realizado de forma online pelo Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), apontou um aumento de 40% na intensidade dos sintomas de depressão para os indivíduos que participaram das três primeiras etapas do estudo. A última fase da pesquisa foi concluída no mês passado e os números finais serão divulgados em breve. O COVIDPsiq entrevistou 6,5 mil pessoas, maiores de 18 anos, em todo o Brasil, e a meta é avaliar como está a saúde mental dos brasileiros frente ao coronavírus.
— A comprovação do estudo nos causa uma grande preocupação porque sem pandemia já vivíamos grandes dificuldades do ponto de vista de saúde mental pública, principalmente, com acesso aos atendimentos. Com a pandemia, pessoas que não teriam estes problemas, passaram a ter. Temos um aumento dos casos de transtornos mentais, como depressão, transtornos de ansiedade (como fobia social e ataque de pânico), transtorno de estresse pós-traumático e também o uso de substâncias, como álcool e outras drogas — comenta o psiquiatra Vitor Calegaro, professor da UFSM e coordenador do projeto.
Mas faz uma ressalva importante: a pesquisa foi realizada apenas com quem tem acesso à internet. Ou seja, os números podem ser ainda maiores.
— Quem participou do estudo são pessoas que representam um extrato da população. Apenas 20% dos que responderam a pesquisa viviam com, no máximo, dois salários mínimos e tinham Ensino Fundamental ou Médio. Aliás, quase todas as pesquisas feitas até agora foram realizadas de forma online. Portanto, são dados subestimados. É provável que sejam muito mais pessoas enfrentando transtornos mentais. Já há dados alarmantes, mas pode ser muito pior — adverte.
A partir de estudos e relatórios internacionais relacionados à saúde mental, Calegaro alerta que o impacto econômico na população, causado pela pandemia, poderia durar aproximadamente sete anos. Ou seja, a pandemia pode ser solucionada, mas quem ficou endividado, os que perderam o emprego ou o empresário que precisou fechar o negócio ainda levarão tempo para reequilibrarem as contas e isso pode culminar em mais casos de depressão e de suicídios nos próximos anos.
Calegaro vai além e aponta que, assim como a pandemia de coronavírus está colapsando o sistema de saúde, os transtornos mentais colapsarão a área da saúde mental nos próximos anos.
— Em termos globais, já há indicadores de que poderão faltar psicólogos e psiquiatras em todo o mundo, incluindo países desenvolvidos. É um legado da pandemia de coronavírus. Não é uma informação alarmante. Se diz isso com base em outras epidemias, como a sars (síndrome respiratória aguda grave, doença respiratória por outro tipo de coronavírus que começou na China por volta de 2002) — justifica Calegaro.
Para a professora de farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora em saúde mental da universidade e do Hospital de Clínicas Adriane Rosa, a ruptura total da rotina das famílias, vacina ainda indisponível para a maioria, o período de distanciamento social, a falta de socializar, a questão econômica e as notícias ruins por meses são fatores desencadeantes de estresse crônico.
— Há indivíduos mais suscetíveis, que podem se desestabilizar emocionalmente, ficando mais ansiosos, mais tensos, preocupados, deprimidos e com alterações de sono. E há os mais resilientes, que possuem reservas internas e que conseguem lidar com a situação — explica.
Adriane coordenou a pesquisa online Covid-19 Saúde Mental: Usando a Tecnologia Digital para Avaliação das Consequências da Pandemia, que envolve um grupo multidisciplinar de pesquisadores da UFRGS e do Hospital de Clínicas, e contou com 3.023 participantes, onde 28,4% eram trabalhadores das profissões consideradas essenciais. Os pesquisadores analisaram o padrão de funcionamento da população brasileira durante a pandemia. O estudo apontou que 67,1% dos entrevistados apresentaram sintomas depressivos, de moderado a grave, e 84,2% demonstraram ansiedade, de moderada a grave.
Também foram identificados três grupos dentro da pesquisa: 30% dos participantes conseguiram manter o próprio nível de funcionamento (trabalho, lazer e relações), 48% mantiveram apenas parte das atividades e 22% foram fortemente atingidos pela pandemia.
— O grupo disfuncional perdeu a capacidade de funcionamento em aspectos como desempenho profissional, aspectos cognitivos (atenção e concentração) e relações interpessoais. Mas o que mais chama atenção é que este grupo tem média de 30 anos, é mais jovem, menor poder aquisitivo e estava altamente sintomático, com sintomas de depressão, estresse, ansiedade e outras variáveis — aponta Adriane.
Psicóloga especialista em terapia cognitivo-comportamental e sistêmica de casal e família, Simone Zaffari, de Porto Alegre, viu a procura no consultório pelo atendimento individual e de casais aumentar a partir do segundo semestre de 2020. Surgiram ainda mais casos de ansiedade, depressão profunda, problemas de insônia e de relacionamento.
— Normalmente, estas pessoas já tinham esta pré-disposição para desenvolver um transtorno psiquiátrico. A pandemia foi o gatilho que faltava, pois, provavelmente, elas já tinham utilizado todos os seus recursos internos para lidar com essa situação, como passear, visitar amigos e parentes. Então, desta forma, se viram quase obrigadas a encararem o problema e foi preciso buscar um auxílio profissional — justifica.
Para superar o momento, Simone sugere ressignificar a linha de pensamento, que tende a ser sempre mais negativa.
— É preciso pensar que 2021 não será igual a 2020 porque já temos vacina, mesmo de forma lenta, e mais informações sobre a doença. Precisamos continuar nos cuidando, fazendo o necessário e acreditando que isso vai passar — resume a psicóloga.
Como melhorar o atendimento no Brasil
Especialistas dão sugestões para melhorar o atendimento direcionado à saúde mental no Brasil:
- Governos municipais, estaduais e o Ministério da Saúde devem formar forças-tarefas reunindo especialistas para melhorar a capacidade de atendimento, com base nos estudos já realizados, e achatar a curva dos problemas relacionados à saúde mental.
- Prever a possibilidade de contratação de profissionais - psicólogos e psiquiatras - para ampliar o atendimento à população que depende do Sistema Único de Saúde.
- Capacitar médicos clínicos, enfermeiros e agentes de saúde, porque muitas demandas relacionadas à saúde mental podem ser resolvidas numa unidade básica de saúde. Há demanda e faltam profissionais suficientes para todos. Muitas vezes, a solução não está no remédio, mas na abordagem ao paciente: saber reconhecer se uma pessoa está com problemas e como falar com esta pessoa, por exemplo.
- Criar estratégias para desmistificar a questão da saúde mental e o acesso aos profissionais. Adoecimentos psíquicos ocorrem em todas as classes sociais. Precisamos desmistificar o acesso a esses profissionais. Ir ao psicológico, ir a um psiquiatra não é pra louco, são para pessoas que querem cuidar de si e de suas emoções.