Uma região do Centro Histórico de Porto Alegre que anos atrás era permeada por pequenos comércios de segmentos tradicionais, como lavanderias, barbearias e vestuário, passou por uma transformação desde a pandemia e tem se consagrado ao longo dos últimos anos como um point noturno da Capital.
A esquina entre as ruas Coronel Fernando Machado e Coronel Genuíno, no encontro do Centro com a Cidade Baixa, tem ganhado cada vez mais vida com a abertura de bares temáticos e de diferentes especialidades gastronômicas.
O primeiro negócio a agitar o local foi inaugurado em 2010. O Brechó do Futebol começou como um blog para venda de camisas de times, mas em pouco tempo tornou-se uma loja física em um ponto na Fernando Machado. Junto do espaço, os sócios montaram um bar temático de futebol.
Sem experiência no ramo, Carlos Caloghero, Otavio Uminski e André Damiani queriam usar o espaço apenas para assistir a partidas com amigos. Conforme aumentaram os clientes, o espaço para o bar também cresceu. Hoje, o Brechó ocupa quatro pontos comerciais na Fernando Machado, sendo um deles apenas para a loja de camisas.
A coisa começou a crescer e o hobby virou negócio. Vimos que poderia ter lucro. Escolhemos esse ponto porque o aluguel era muito baixo, R$ 800 na época. Aqui na volta não tinha nada ainda.
OTAVIO UMINSKI
Sócio do Brechó do Futebol
Em 2020, quando a marca completou 10 anos, os empresários decidiram abrir uma nova unidade, no bairro Moinhos de Vento. A inauguração atrasou quase um ano devido à pandemia. Em 2021, assumiram também a gestão do Gaúcha Sports Bar, onde são feitas transmissões da Rádio Gaúcha.
Para celebrar os 15 anos de história completados em 2025, o Brechó do Futebol abrirá novos bares no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Na Fernando Machado
Desde a abertura do Brechó na Fernando Machado, outros negócios do ramo de gastronomia tentaram a sorte na mesma rua. Já teve restaurante de sushi e até bar de espumantes, mas todos fecharam. O movimento à noite só era maior em dias de jogos de futebol, quando torcedores se aglomeravam em frente ao Brechó.
Os negócios de outros segmentos continuavam atendendo os moradores da região. Porém, o cenário mudou a partir da pandemia, quando os pontos agora deixados por esses comércios passaram a ser ocupados por bares com perfil noturno.
A empresária e cozinheira Doris Schüler notou o potencial da noite na Rua Fernando Machado para além dos dias de jogos e abriu, no final de 2019, o Onze, bar especializado em drinques e petiscos. O espaço fica ao lado do antigo Void, que era voltado para a cena do skate na Capital e fechou sua unidade na rua e também a do bairro Moinhos de Vento.
Três meses depois após a inauguração do Onze, veio a pandemia de covid-19, um período difícil, mas que foi superado. Em 2023, a operação de Doris foi ampliada para a loja ao lado, quando o amigo Pablo Dias entrou na sociedade. Hoje, a loja tem 80 metros quadrados e 40 lugares para clientes sentados, contando um parklet na rua.
— Ao contrário de outras áreas do Centro, o público aqui está cada vez maior e melhor. Está mais a nossa "cara". Isso passou a acontecer quando os bares ficaram mais unidos — afirma a empresária.
A maioria dos nossos clientes consomem de pé mesmo. As pessoas daqui não querem mais ficar presas em um lugar. Ficam livres na rua, curtindo outros bares também.
DORIS SCHÜLER
Sócia do Onze
Um dos parceiros nesta união é o Réu, inaugurado em 2021 no espaço que era da Void. O foco do bar é hambúrgueres e bebidas. Em 2022, o corretor de imóveis Gabriel Ferreira comprou a operação e a marca, e fez mudanças no cardápio.
— Eu não era um frequentador da rua, mas conhecia, passava de carro. Hoje, o negócio está estruturado. Estamos pensando em abrir mais lojas da marca na Zona Norte, mas focadas no segmento de delivery — diz Ferreira.
Outro bar com planos de expandir com novas lojas é o Arvo. Sua primeira unidade foi inaugurada outubro de 2023 pelo designer Vitor Hugo Silveira, morador do Centro Histórico. Ele instalou seu restaurante no lugar de uma antiga lavanderia. A especialidade da casa são carnes e sanduíches feitos na parrilla.
— Quando cheguei no Centro, era o auge da pandemia. Depois, quando tudo reabriu, passei a virar frequentador dos bares daqui. Vinha todos os dias, durante um ano, e sempre achei que faltava alguma coisa. A vida não está só dentro do bar, mas fora também — conta Silveira.

Há quem vá para a Fernando Machado apenas para beber e ficar na calçada. O vendedor Tiago Gonçalves diz que frequenta a rua de quinta-feira a sábado, todas as semanas, após o trabalho. Junto com amigos, ele costuma comprar bebidas no Trio.
O dono do estabelecimento, Felipe Batimanza, diz que seu público é formado por pessoas na faixa dos 28 aos 35 anos de idade.
Chegamos aqui no final da pandemia. Agora está sendo um dos melhores momentos de público aqui na rua. Sempre fui frequentador, moro no Centro e já ficava de olho neste ponto.
FELIPE BATIMANZA
Publicitário e dono do Trio

Outras opções para comprar bebidas são o Parada e o Machado, frequentados por skatistas. E tem o mini mercado Ranucci, que está na rua desde a década de 1980.
Segue pela Coronel Genuíno
Dobrando para a Rua Coronel Genuíno, percebe-se que diversos negócios começaram a se instalar no local. Um deles é o Genú, que ocupou o espaço deixado pelo bar Firma, há dois anos. Quando surgiu, a ideia do novo negócio era de ser um "botecão" que serviria "friturinhas", mas os pratos acabaram ficando "incrementados demais", admite o sócio Leo Machado.
— Nosso produto é artesanal e temos uma parte de coquetelaria muito forte. Isso que é legal daqui. Cada bar tem uma vibe diferente, por isso, pegamos vários públicos. As duas ruas estão sempre bombando, o pessoal vai de um bar para o outro — diz Machado, que trabalha no ramo há 10 anos.
Já a pedida do Buena Pizza, no outro lado da rua, é sentar em mesas na calçada, ouvir uma boa playlist e comer pizzas de longa fermentação. O negócio foi inaugurado há seis anos pelas amigas Juliana Rodrigues e Gabriela Fiori, que antes de empreender trabalhavam em uma consultoria ambiental.
Sempre moramos na região. Vimos que foi se criando uma noite, um movimento. É um lugar onde gostávamos de estar, conhecemos todo mundo. As pizzas eram nossa janta. Um dia, a gente se olhou e disse: 'Vamos fazer isso para vender'.
GABRIELA FIORI
Sócia do Buena Pizza
Mais adiante na Coronel Genuíno, um bar com temática inusitada abriu há três semanas. A proposta do Tatau é servir petiscos e chopes em um ambiente decorado por desenhos de tatuagens.
Para tentar inserir os clientes neste cenário, o empresário e tatuador Eduardo Reis colocou quadrados com trabalhos feitos por ele e por outros artistas. Ele mesmo construiu as mesas e as cadeiras em madeira, com a ajuda do amigo Solismar dos Santos. No andar de cima, está sua casa, e embaixo ficava seu estúdio de tatuagens.
Comecei a fazer eventos com amigos aqui à noite. O pessoal começou a confundir com um bar, então fui alimentando a ideia de abrir um. Fui trabalhar em outro estúdio, continuei morando em cima e esse espaço ficou vago. Depois da enchente, comecei a desenhar o projeto.
EDUARDO REIS
Proprietário do Tatau
Na esquina seguinte, abriu recentemente o bar Na Praça, que ocupa um ponto clássico que já foi do Boteco Natalício — e por último estava com a cervejaria 4Beer. A proposta do negócio também é servir bebidas e petiscos, mas em um ambiente com mesas de sinuca e pingue-pongue.
Eventos incrementam as opções

Pelo menos uma vez ao mês, a prefeitura de Porto Alegre autoriza o fechamento da Rua Coronel Genuíno para eventos organizados pelos bares. É uma colaboração entre mais de um estabelecimento, que racham o cachê de artistas. Segundo o dono do Arvo, Vitor Hugo Silveira, esses são os dias de maior movimento.
— Não sobra uma água, os bares vendem tudo. Quando chegamos aqui, não se fazia muita festa. Viemos com a ideia de colocar um samba e foi bom para todo o comércio em si — conta o empresário.
Outros eventos menores acontecem esporadicamente, mas sem fechar a rua, usando apenas a calçada em frente aos estabelecimentos. O Machado, por exemplo, traz DJs. Já o Trio e o Onze chegam a contratar bandas.
Horário de silêncio
Letícia Marconatto mora há 11 anos em um edifício na esquina da Fernando Machado com a Avenida Borges de Medeiros, quase ao lado dos bares. Ela acompanhou de perto a chegada desses negócios à rua. No começo, até se queixava do barulho, mas acabou se rendendo:
— Atualmente, minha estratégia é: se o barulho está me atrapalhando, eu desço e vou curtir. Sou frequentadora de vários bares aqui, as comidas são ótimas, com preço justo, e eu amo poder ter isso "na comodidade do lar", além de curtir as rodas de samba.
No mesmo edifício de Letícia, mora Jovana Ferreira, que chegou há dois anos ao prédio, quando os bares já estavam estabelecidos na região.
— Fui poucas vezes, mas gosto que tenha movimento no local. Me sinto mais segura. Claro que o barulho às vezes incomoda, mas sei onde eu moro — diz.
Todos os bares com quem a reportagem de Zero Hora conversou afirmam que respeitam o horário de silêncio, que começa às 23h. Mas há outro problema que incomoda moradores: a aglomeração.
Tânia Borges, por exemplo, morou por 20 anos em um edifício perto dos estabelecimentos, mas se mudou há dois meses.
— Eu não conseguia ir no mercado à noite de tanta gente que fica aqui. As pessoas ficam na calçada, até se sentam, e não deixam tu passar. Agora, estou morando em uma parte mais calma da rua — diz.