Ruas, praças e tudo o mais que compõe uma cidade volta e meia muda de nome para se adequar à realidade, e com Porto Alegre não tem sido diferente nesses quase 250 anos. Eventos diversos, como o Império, a Independência do Brasil, a proclamação da República e a Guerra do Paraguai, entre outros, serviram de estopim para batizar e rebatizar logradouros.
Um dos primeiros movimentos mais massivos ocorreu no final do século 19. Conforme o professor Charles Monteiro, do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), com a passagem do Império para a República no Brasil, muitas ruas foram rebatizadas com referências ao novo período vigente.
— Trata-se da construção da memória política no espaço público. Ou seja, afirmar a memória coletiva por meio da nomeação de praças, ruas e logradouros com o novo regime, desvinculando-a do período anterior — afirma.
O docente cita mais motivos para a troca dos nomes das ruas e praças, como a afirmação de determinado grupo político ou ideologia sobre outro.
— O caso mais recente de disputa pela memória está relacionado com a Avenida da Legalidade e da Democracia, que foi estabelecida para lembrar a luta pela democracia no Brasil após a ditadura militar. Recentemente, no contexto político conservador que estamos vivendo, houve todo um movimento para que ela voltasse a ter o nome anterior, que é do ditador Castello Branco. Oficialmente, voltou o nome antigo ligado à ordem política e social do período da ditadura. Mas muitas pessoas ainda usam o outro nome. São disputas políticas e sociais que se referem a diferentes narrativas históricas e maneiras de contar a história procurando valorizar e fixar o nome de determinados indivíduos, grupos ou até de ideologias políticas e sociais no espaço urbano — explica.
Outro exemplo que a política influenciou é a Avenida João Pessoa, que era chamada de Redenção. Um decreto municipal tratou de homenagear o presidente da Paraíba, assassinado em 26 de julho de 1930, em Recife.
A maior dificuldade que tive foi descobrir quem eram alguns homenageados. A Rua Pereira Franco, que fica no bairro São João, ninguém sabia quem era a pessoa. Foi um comandante de um navio naufragado no século 19
SÉRGIO DA COSTA FRANCO
historiador
O comandante que naufragou
O historiador Sérgio da Costa Franco, 93, é uma referência quando o assunto diz respeito aos nomes das ruas da Capital. Autor de Porto Alegre - Guia Histórico, o escritor cita um problema que encontrou durante suas pesquisas:
— A maior dificuldade que tive foi descobrir quem eram alguns homenageados. A Rua Pereira Franco, que fica no bairro São João, ninguém sabia quem era a pessoa. Foi um comandante de um navio naufragado no século 19.
Curiosamente, a Rua Pereira Franco aparece na planta municipal de 1896. Porém, com a denominação de Rua Florida, o que não está registrado em outros documentos. Mas volta a constar em um mapa de 1906. Como um posto da Polícia Administrativa do município foi erguido nessa rua, as pessoas começaram a chamá-la também de Rua do Posto.
Sérgio da Costa Franco, que delimitou seu trabalho até o ano de 1924, quando o então prefeito José Montaury promoveu um levantamento de todas as ruas abertas durante sua gestão, critica a forma como algumas celebridades ganham a homenagem ao batizarem uma via com seus nomes.
A Rua do Cotovelo, que atualmente é a Riachuelo, era conhecida assim porque fazia uma curva onde passava um riacho. Depois passou a ser chamada de Riachuelo pela vitória do Brasil contra o Paraguai
CÉLIA FERRAZ DE SOUZA
professora aposentada da UFRGS
— Há ruas relevantes como a Borges de Medeiros, com o Viaduto Otávio Rocha inaugurado em 1932, e a Farrapos. Em Porto Alegre, qualquer sujeito de destaque recebe uma homenagem com nome de rua, alguns até de forma imerecida — conclui.
A professora aposentada do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Célia Ferraz de Souza, pesquisou sobre o tema. Em texto de 2001, intitulado O sentido das palavras nas ruas da cidade. Entre as práticas populares e o poder do Estado (ou público), a ex-docente abordou esses referenciais construídos no imaginário popular. O material integra o livro Palavras da cidade, organizado por Maria Stella Bresciani e lançado pela Editora da UFRGS.
— A Rua do Cotovelo, que atualmente é a Riachuelo, era conhecida assim porque fazia uma curva onde passava um riacho. Depois passou a ser chamada de Riachuelo pela vitória do Brasil contra o Paraguai — conta a pesquisadora.
No caso em questão, foi um triunfo naval ocorrido em 1865. E, naquela época, a Rua do Cotovelo, na verdade, chamava-se Rua da Ponte. Pelo menos desde 1843, ano em que se fizera o primeiro emplacamento das ruas, toda a artéria ficou denominada de Rua da Ponte pelas autoridades.
O nome antigo que não morre
A Rua dos Andradas é um caso clássico de via cujo nome antigo não morre — o Parque Farroupilha pode ser outro exemplo, até hoje chamado de Redenção. A via é conhecida popularmente como Rua da Praia, já que o Guaíba chegava até lá. Via mais antiga da Capital, a Rua dos Andradas denominava-se “da Praia” da extremidade ocidental da península até a atual Rua General Câmara (antiga Ladeira), conforme Sérgio da Costa Franco em Porto Alegre - Guia Histórico. Daquele ponto para cima, até a Praça Dom Feliciano, era Rua da Graça. Mas essa última denominação não caiu no agrado do povo e ficou no esquecimento. Dessa forma, as pessoas simplificaram e optaram por denominar toda a extensão como “da Praia”.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completou 249 anos em 26 de março de 2021 ainda sob impacto da pandemia do coronavírus. Para o Grupo RBS, a data também marcou o início da contagem regressiva para os 250 anos, que serão completados em 2022. Assim, mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
O botânico, naturalista e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire registrou a importância da Rua da Praia quando passou por aqui. Em 1820, o europeu escreveu que a via era assim: "Extremamente movimentada, com numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros carregando volumes diversos. É dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de oficinas de diversas profissões".
A Câmara Municipal decidiu que, a partir de 7 de setembro de 1865, para comemorar o aniversário da Independência do Brasil, a Rua da Praia passasse a ser conhecida como Rua dos Andradas ( homenagem aos irmãos José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da Independência, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, cuja atuação foi decisiva para que o Brasil conquistasse autonomia política e administrativa ). Na mesma ocasião, a Rua da Alfândega passou a ser chamada de Sete de Setembro.
Mas engana-se quem pensa que basta o poder público batizar ou trocar o nome de alguma rua ou avenida para que isso seja aceito de forma espontânea. A Rua da Praia permanece viva no imaginário popular.
— Cada imagem tem uma representação e entra no imaginário coletivo do povo. Quando falamos na Praça da Matriz ou da Alfândega, esses não são os nomes delas, assim como a Rua da Praia ou da Ladeira. Porém, é dessa maneira que são conhecidas — diz a professora Célia.
O historiador Charles Monteiro, que também é autor do livro Breve História de Porto Alegre, comenta que existe um costume na sociedade de manter o uso de uma denominação mesmo quando ela é oficialmente alterada.
— O nome do local é conhecido, durante muitos anos, com uma determinada denominação, e as pessoas continuam a chamá-lo por aquele nome porque possuem uma relação com as práticas sociais e de vivência, e uma memória com aquele lugar. A oficialidade do nome, muitas vezes, não "cola" porque existe uma memória coletiva — explica.
Veja alguns logradouros de Porto Alegre que trocaram de nome ou têm outras denominações
- Avenida João Pessoa (Caminho da Azenha, Nova do Portão, Rua da Azenha, Rua da Redenção, Avenida da Redenção)
- Avenida Getúlio Vargas (Rua de Santa Teresa, Rua do Menino Deus e Rua 13 de Maio)
- Avenida Venâncio Aires (Rua da Imperatriz, Rua Venâncio Aires, antes de virar avenida)
- Rua Coronel Fernando Machado (Rua do Arvoredo)
- Rua Siqueira Campos (Rua das Flores)
- Rua General Vitorino (Rua do Arco da Velha, Travessa de Baixo, Rua ou Travessa da Prisão Militar, Travessa da Caridade, Rua da Alegria)
- Rua Riachuelo (Rua do Cotovelo, Rua da Ponte)
- Rua da República (Rua do Imperador)
- Travessa Venezianos (Rua Venezianos, Joaquim Nabuco)
- Avenida Borges de Medeiros (conjunto formado pela Travessa do Poço, Beco do Freitas e Beco do Meireles; Rua General Paranhos)
- Rua José Montaury (Rua da Ferraria, Rua Nova do Paraíso, Rua do Paraíso, Rua da Polícia, Rua Conde D’Eu, Rua 15 de Novembro)
- Avenida Otávio Rocha (Beco do Rosário, Rua 24 de Maio)
- Avenida Alberto Bins (Rua São Rafael)
- Avenida Farrapos (Avenida Minas Gerais)
- Avenida Cristóvão Colombo (Caminho da Chácara de Francisco Pinto de Souza, Estrada do Freitas ou Estrada do Chico Pinto, Rua da Floresta)
- Rua dos Andradas (Rua da Praia e, em outro trecho, Rua da Graça)
- Rua General Câmara (Rua do Ouvidor, Beco do João Inácio ou Beco da Garapa, Rua da Ladeira)
- Avenida Assis Brasil (Caminho do Passo da Areia)
- Rua do General Andrade Neves (Rua Nova, Rua do Barão do Triunfo, este trocado em seguida)
- Rua Sete de Abril (Beco do Motta, Rua da Princesa)
- Rua dos Voluntários da Pátria (Caminho Novo)
- Avenida Presidente Franklin Roosevelt (Avenida Eduardo, em homenagem a Eduardo de Azevedo e Souza Filho)
- Arroio Dilúvio (Riacho, Riachinho, Arroio da Azenha)
- Praça General Osório (Alto do Manoel Caetano, Alto do Senhor dos Passos, Alto da Conceição, Alto da Bronze)
- Estádio Beira-Rio (Estádio José Pinheiro Borda)
- Parque Farroupilha (Várzea do Portão, Campo do Bom Fim, Campo da Redenção, Parque da Redenção)
- Catedral Metropolitana de Porto Alegre (Igreja Matriz de Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre)
- Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre)
- Beneficência Portuguesa de Porto Alegre (Sociedade Beneficente e Hospitalar da Colônia Portuguesa de Porto Alegre, Sociedade Portuguesa de Beneficência ou Hospital de Beneficência Portuguesa)
- Shopping Total (originalmente foi a Cervejaria e Fábrica de Gelo Bopp & Irmãos, depois Cervejaria Continental e Cervejaria Brahma)
- Usina do Gasômetro (de 1928, na verdade uma usina termelétrica que ganhou o nome pela proximidade com a Usina de Gás de Hidrogênio Carbonado, erguida em 1874)
- Paço Municipal de Porto Alegre (conhecido como Prefeitura Velha ou Paço dos Açorianos)
- Fundação O Pão dos Pobres de Santo Antônio (Abrigo das Famílias Pobres do Pão dos Pobres de Santo Antônio)
- Praça Conde de Porto Alegre (Praça do Portão e Praça General Marques)
- Esquina Maldita (alcunha da esquina da Rua Sarmento Leite com a Avenida Osvaldo Aranha a partir dos anos 1970)
- Praça Marechal Deodoro (Praça da Matriz, da Igreja e Praça de Dom Pedro II)
- Praça da Alfândega (da Quitanda, depois da Alfândega, Senador Florêncio e novamente da Alfândega)