A ceia de Natal de 2021 foi uma das últimas refeições preparadas sem preocupação com a água que saía da torneira e enchia as panelas das casas da família Rocha. Desde o final do ano até esta quinta-feira (10), o líquido é item raro no endereço, o número 1.944 da Rua Primeiro de Setembro. E na vizinhança.
Moradores da parte mais alta do Morro da Cruz, no bairro Vila São José, zona leste de Porto Alegre, reclamam do desabastecimento, que se repete em todos os verões, mas alcançou um nível inédito neste começo de ano.
— Nunca tinha ficado tanto tempo assim sem água. E a água que chega com o caminhão-pipa não presta, é suja. Ficamos doentes por ter cozinhado com ela, mesmo fervendo. Minha sobrinha de cinco anos perdeu quatro quilos por conta de uma infecção intestinal — relata Carla Rocha, 20 anos, enquanto espera a máquina de lavar roupa da irmã mais velha limpar os itens da família:
— Faz quase dois meses que lavam tudo aqui e precisam buscar água para cozinhar. Hoje mesmo a máquina não parou, vai para a terceira carga daqui a pouco — complementa a irmã Thaís, 28.
Thaís tem água normalmente em sua casa e auxilia as irmãs, que vivem a cerca de 300 metros e dependem de caminhão-pipa para tarefas do dia a dia, como cozinhar ou manter a higiene pessoal. Ao longo da rua, muros foram pichados e cartazes foram feitos pelos moradores com avisos endereçados à prefeitura: “Falta água” e “Queremos água” resumiam o apelo.
Karen, irmã do meio, protagonizou um dos momentos que marcaram a visita do prefeito Sebastião Melo ao local na quarta-feira (9). Com a filha Manuela no braço esquerdo, a mulher de 24 anos desabafou sobre a situação. O vídeo da manifestação dela viralizou entre os moradores e vereadores da oposição.
— Minha filha ficou doente porque veio água podre do caminhão-pipa — acusou Karen, na quarta-feira, em frente ao grupo que acompanhava o prefeito na visita.
Vinte e quatro horas depois, mais calma, mas ainda indignada disse:
— Senti raiva, precisava falar aquilo tudo, colocar para fora.
Karen e as irmãs tentam vender o terreno onde estão as casas, que é da família há 60 anos. Elas contam que o avô foi um dos primeiros moradores do local, quando o topo do morro ainda era área verde.
Abastecimento comprometido
A prefeitura prometeu doar caixas d’água para as residências do local, mas muitas famílias já utilizam equipamentos semelhantes. As casas das irmãs Rocha e a da vizinha Inês da Silva têm, cada uma, um reservatório para cerca de 150 litros de água. Em ambos os recipientes, na manhã desta quinta, a água que estava armazenada ali desde a segunda-feira (7) tinha aspecto menos translúcido do que o verificado em torneiras de outros pontos da cidade.
— O caminhão-pipa vem duas vezes na semana, em média, mas não consegue atender todo mundo. Fora isso, temos um fio de água durante algumas noites, e nada mais — argumenta Inês, antes de mostrar o fluxo na torneira do pátio.
Outras vizinhas da Rua Primeiro de Setembro, no entanto, dizem ter percebido o abastecimento de água se alternando nas últimas semanas.
— É um milagre a gente ter água normal aqui em cima, porque uns tem e outros não. Mas não é muito, porque se ligar a máquina já não funciona a torneira — comenta Lucimar Costa.
— No verão falta água e no inverno falta luz — emenda Tais García, moradoras do local há um ano.
Ainda que a situação seja diferente ao longo da rua, a solidariedade tem unido essa parte da comunidade. Segundo Carla e Thaís Rocha, os moradores que têm mais água dividem o acesso às torneiras com os vizinhos prejudicados, da mesma maneira que ajudaram a criar cartazes e fazer cobranças durante a visita da comitiva da prefeitura. A indignação da vizinhança também tem origem na comunicação das autoridades, na visão de Inês.
— Está estranho. No começo, o motivo era o bombeamento, achávamos que depois normalizaria. Ontem, nos disseram que é porque a população cresceu muito, mas durante o ano tinha água normal. Parece que fazem um revezamento, desligam e ligam por conta, sem nos explicar. Queremos uma solução — conclui Inês.
O que diz o Dmae
O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) divulgou um posicionamento sobre a situação. Confira a íntegra:
"O Dmae garante a potabilidade da água disponibilizada à população e ressalta que não oferece risco à saúde. Os veículos caminhões-pipa são abastecidos pela rede de distribuição de água potável, que é monitorada em mais de 350 pontos, para garantir a qualidade da água tratada. As análises são realizadas em diversos pontos da rede, assim, parâmetros como o teor de cloro necessário são analisados no Dmae, garantindo a segurança para o consumo. Caso existam relatos de problemas na qualidade deste serviço, solicitamos contato pelo canal 156, informando o Departamento para as providências cabíveis. Os caminhões também passam por cloração a cada seis meses. A última coleta foi realizada no dia 03/02/2022 e os resultados comprovam que as amostras de água analisadas encontram-se dentro dos padrões de potabilidade exigidos pela legislação."