Ponto inicial para o crescimento da cidade, o centro de Porto Alegre é cercado de histórias e lendas urbanas que foram sendo passadas de geração a geração. Uma delas, que ainda habita o imaginário popular, é a existências de túneis subterrâneos secretos, espalhados por diferentes pontos da área central, que seriam usados como rota de fuga para autoridades e figuras importantes da sociedade.
Fora os já conhecidos “túneis” do Palácio Piratini – que, segundo especialistas, são galerias subterrâneas de logística, feitas para dar subsídio à rede de esgotos, luz, água, telefonia e demais serviços –, outras construções instigam os porto-alegrenses a cogitar a existência dessas rotas de fuga.
Uma delas seria um túnel subterrâneo que teria como ponto de início o Hospital Moinhos de Vento, no bairro Floresta, desceria a Rua Ramiro Barcelos em direção ao Shopping Total – onde, inicialmente, era a Cervejaria Bopp – e seguiria em direção ao cais do porto. Para quem considera essa possibilidade, o caminho seria uma alternativa para algum paciente que precisasse deixar rapidamente o hospital.
A possibilidade de existência deste túnel despertou a curiosidade do leitor Norton Kruel, que encaminhou a história para GZH.
Na história registrada do Hospital Moinhos de Vento, inaugurado em 1927, não há nenhuma referência a obras além do terreno da instituição. Mas o mesmo não pode ser dito no Shopping Total. A então Cervejaria Bopp – depois Cervejaria Continental e, mais tarde, Brahma – possui uma rede de túneis e, até hoje, uma parte pode ser visitada diariamente.
Localizada ao lado da chaminé, na entrada do shopping, a Cantina Famiglia Facin oferece aos clientes a possibilidade de conhecer e caminhar pelos túneis que fizeram parte da história da cervejaria, construída em 1911. O restaurante foi adaptado para operar na outrora casa de caldeiras, onde funcionavam os fornos do local.
— Quando entramos aqui pela primeira vez, encontramos terra batida, insetos, e era muito escuro. Fomos organizando e ajustando tudo o que era permitido para manter a estrutura original. Nada foi destruído, e até hoje não tivemos problemas na estrutura, pela qualidade do material — revela a proprietária da Cantina, Nicole Pelissoli Facin.
Origem da lenda
No espaço do restaurante, há um túnel que indica uma continuação para outros pontos da cervejaria, e não há uma certeza sobre onde termina. Uma pesquisa realizada pelos historiadores Gunter Axt e Lídia Fabrício, a pedido do shopping, aponta que a mística dos túneis teria iniciado por obra de um integrante da família Bopp. Arthur Bopp, filho do idealizador da cervejaria, brincava com os amigos que havia um túnel por baixo da rua que transportava a cerveja recém-fabricada, fresquíssima e sem pasteurização, diretamente para a casa dele.
Existe uma explicação prática e uma romântica. Eu sempre conto as duas para os visitantes do shopping. Para mim, é possível que tenham existido acessos de locais para a cervejaria. Agora, se é lenda ou fato, nunca vamos saber
SÍLVIA RACHEWSKY
Gerente de marketing do Shopping Total
A partir daí, outras lendas surgiram, citando construções que seriam uma rota de fuga construída na época da Primeira Guerra Mundial, que conduziria os diretores da cervejaria em segurança até as margens do Guaíba. Outros dizem que essas galerias se estenderiam por baixo da Avenida Cristóvão Colombo até as casas dos proprietários da fábrica para esconder ações ou intenções inconfessáveis.
Para os arquitetos Analino Zorzi e Fernando Oltramare, que analisaram os túneis durante levantamento cadastral que orientou o projeto de restauração do conjunto tombado, a explicação é mais simples. As estruturas foram erguidas para garantir a manutenção da fábrica e a passagem de tubulações de vapor e água quente.
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A gerente de marketing do Shopping Total, Sílvia Rachewsky, que acompanhou o trabalho de pesquisa, revela, no entanto, que mesmo sabendo de todo o contexto histórico, ainda é possível considerar a existência de um projeto maior:
— Existe uma explicação prática e uma romântica. Eu sempre conto as duas para os visitantes do shopping. Para mim, é possível que tenham existido acessos de locais para a cervejaria. Agora, se é lenda ou fato, nunca vamos saber.
O caminho do Arquivo Público
Outro suposto túnel secreto de Porto Alegre está mais próximo do Palácio Piratini, e, diz a lenda, poderia ser uma parte de um complexo caminho de fuga que sairia da sede do Executivo gaúcho. Localizada dentro do Arquivo Público, a construção pode ser acessada por meio de uma porta de ferro que fica embaixo da escadaria que liga o Arquivo à Assembleia Legislativa.
A entrada não fica em um local muito escondido, como era de se esperar para um suposto túnel de fuga, e pode ser observada por quem entra no Multipalco do Theatro São Pedro.
Depois da conclusão da pesquisa, ficou claro que o túnel subterrâneo localizado embaixo do estacionamento da Assembleia é uma galeria construída com o objetivo de fazer a circulação do ar e, assim, garantir a conservação dos documentos arquivados no prédio 1 do Arquivo
AERTA MOSCON
Diretora do Arquivo Público
Assim como o túnel do Shopping Total, há diferentes interpretações sobre a funcionalidade do espaço. Mas as semelhanças param por aí. Se nos túneis da antiga cervejaria é possível hoje degustar uma comida italiana e tomar um bom vinho, no suposto caminho do Arquivo Público é necessário ter força nas pernas e estar preparado para andar em lugares apertados.
Construído em 1906 com o objetivo de garantir a segurança de documentos importantes do Estado, o Arquivo Público conta com uma sólida estrutura de manutenção dos documentos e, para a época, um sistema elaborado de ventilação, que atualmente não é mais utilizado.
A diretora do órgão, Aerta Moscon, revela que o local chegou a ser ponto de passagem durante as visitas de escolas, mas, depois de uma pesquisa feita pelo historiador Claus Farina, quando ele ainda atuava no Arquivo Público, o suposto túnel saiu do roteiro.
— Depois da conclusão da pesquisa, ficou claro que o túnel subterrâneo localizado embaixo do estacionamento da Assembleia é uma galeria construída com o objetivo de fazer a circulação do ar e, assim, garantir a conservação dos documentos arquivados no prédio 1 do Arquivo — afirma a diretora.
Rotas sairiam do Piratini
Para além da pesquisa de Farina, a possibilidade de que poderia haver uma continuação do trajeto do Arquivo rumo ao Palácio Piratini é considerada por muitas pessoas que já estiveram dentro do túnel. Umas delas é o engenheiro César Franarin, que atuou nas obras de construção do Multipalco em 2003 e deparou com o antigo portão de ferro durante os trabalhos.
Eu e os meus colegas ficamos com a sensação de que, originalmente, ali havia um túnel e seria muito propício para ser um sistema de fuga
CÉSAR FRANARIN
Engenheiro que atuou nas obras de construção do Multipalco
O engenheiro chegou a fazer uma incursão no local e encontrou elementos que poderiam indicar que o objetivo do túnel seria outro.
— Logo na entrada é possível encontrar um local onde poderiam ficar soldados de guarda e até um espaço para uma espiriteira (instrumento usado para fazer fogo). Depois, o caminho vai ficando mais moderno e termina em uma parede que daria para as fundações da Assembleia. Eu e os meus colegas ficamos com a sensação de que, originalmente, ali havia um túnel e seria muito propício para ser um sistema de fuga — argumenta Franarin.
Dentro do imaginário popular, além desse suposto túnel, outras três rotas teriam sido feitas saindo do Piratini. A primeira ficaria a oeste, indo do palácio até a volta da Usina do Gasômetro. O segundo, a leste, em direção à Praça Raul Pilla, passando por onde é atualmente a Santa Casa. E o último ao sul, saindo na Rua Fernando Machado. Até hoje, não houve comprovação da existência desses caminhos. Sejam os túneis lendas, ecos de um passado que não existe mais ou segredos ainda bem guardados, o fato é que eles ganharam um lugar próprio no imaginário popular da Capital.