Desde 2016, o fundo criado na década de 1980 para investimentos no Mercado Público, batizado de Funmercado, recolheu R$ 18,9 milhões, mas os valores não conseguiram renovar um dos cartões-postais de Porto Alegre.
O relatório das despesas da prefeitura com recursos do Fundo Municipal do Mercado Público de Porto Alegre (Funmercado) aponta que o último ano em que o Mercado recebeu investimentos de vulto foi em 2016, último ano do governo José Fortunati, quando R$ 3,4 milhões captados junto ao governo federal foram investidos em “restauração arquitetônica e recuperação da cobertura metálica e seus complementes”. No valor, não estão os gastos de manutenção, que somam outros R$ 3,4 milhões, totalizando R$ 6,9 milhões gastos em 2016.
Em 2017, já sob a gestão Nelson Marchezan, a construtora responsável pela obra no telhado ainda recebeu R$ 621, 4 mil para a conclusão da obra. Desde então, os gastos com o Mercado a partir de recursos do fundo oscilam em torno de R$ 3,5 milhões anuais, integralmente em despesas ordinárias de manutenção e conservação, como vigilância (gasto médio de R$ 1,3 milhão nos três primeiros anos de governo), elétrica (R$ 656,8 mil) e água (R$ 566,3 mil).
Desde 2016, a prefeitura de Porto Alegre fez uso de R$ 5,4 milhões do fundo para cobrir outros gastos do município. Somente no primeiro semestre de 2020, R$ 662,4 mil de receita do Mercado foram transferidos pela administração municipal para outras despesas. Os R$ 5,4 milhões representam 30% das receitas do fundo neste período: R$ 18,9 milhões.
O valor faz parte de dados requisitados por GZH sobre a gestão financeira do espaço por meio da Lei de Acesso à Informação. O Mercado passa por processo de concessão de sua gestão por 25 anos à iniciativa privada, atualmente paralisado pela Justiça. Desde julho de 2013 o Mercado está com o segundo andar desativado em razão de um incêndio, pois carece de instalação elétrica.
A gestão do fundo está no radar da Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, que em janeiro de 2019 abriu inquérito civil para “investigar a regularidade da administração dos recursos” do fundo “considerando que a gestão do equipamento está atualmente comprometida pela suposta ausência de recursos para fazer frente aos seus custos de manutenção”.
De acordo com a prefeitura, não há irregularidade na apropriação do recurso. Por meio de um decreto de 13 de setembro de 2018, o Executivo regulamentou uma emenda constitucional de 2016 que desvincula 30% das receitas de 20 fundos municipais depositados entre 2016 e 2023. Na prática, isso permite que a prefeitura use esse percentual dos fundos para despesas alheias ao propósito inicial deles.
O Funmercado foi criado em 1987 pelo governo Alceu Collares, com assinatura da então secretária da Fazenda, Dilma Rousseff. Sua única fonte constante de receita é o aluguel das bancas dos permissionários. Conforme a lei, o fundo é destinado a “restauração, reforma, manutenção e animação do Mercado” e deveria ser gerido pela Empresa Porto Alegrense de Turismo (Epatur), que se reuniria mensalmente com os locatários do Mercado para apreciação da aplicação dos recursos. A estatal Epatur foi extinta em um longo processo ocorrido entre 2000 a 2012.
Prefeitura defende a concessão
Conforme a prefeitura, o montante de aproximadamente R$ 1 milhão anual removido do fundo seria insignificante diante das obras que o Mercado Público precisaria e não muda o ponto de vista de que a melhor solução para o espaço é uma concessão à iniciativa privada.
– É uma conta simples. No edital da concessão, estão previstos R$ 40 milhões em obras nos primeiros três anos. Se fôssemos usar somente esse percentual de 30% do fundo, demoraríamos 40 anos para somar esse investimento – compara o secretário de Parcerias Estratégicas, Thiago Ribeiro, pasta que comanda o processo de concessão.
Sobre o argumento de que a soma desses valores poderia ser relevante – sendo maior, por exemplo, do que o valor investido na reforma do telhado entre 2016 e 2017 – o secretário argumenta que a prefeitura preferiu priorizar outros gastos.
– Sim, o recurso poderia ser acumulado e então investido. Mas a desvinculação de receitas é uma ferramenta normal da gestão pública. Em um cobertor curto, como é o caixa da prefeitura, é justo deixar um recurso parado e deixar de realizar um atendimento em saúde, por exemplo? – questiona Ribeiro.
Segundo a presidente da Associação de Permissionários do Mercado (Ascompec), Adriana Kauer, a associação teve acesso à informação sobre o valor retirado do Funmercado em dezembro de 2019, em uma das audiências do MP. Conforme Adriana, os R$ 5,4 milhões seriam suficientes para finalizar a obra elétrica e reabrir o segundo piso.
– Faz falta. No ano passado, a associação orçou quanto custaria assumir essa obra e tivemos um orçamento de R$ 4 milhões. Ajudaria a prefeitura a ter mais espaços para locar e a população a ter outra visão sobre o Mercado Público. Hoje, muita gente diz “tem de vender” porque julga que não temos capacidade sequer de reabrir o segundo piso – declara Adriana.
A prefeitura argumenta ainda que não deixou de buscar fontes de investimento para o Mercado. Cita, por exemplo, a negociação com o governo federal pela liberação da segunda parcela de R$ 10 milhões do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autorizados para a restauração do segundo piso após o incêndio de 2013. A primeira parcela já foi utilizada.
O MP enxerga a questão de forma diferente, conforme a Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, o município teve de ser notificado em 2019 de que o recurso estaria em risco caso não fossem apresentados novos projetos.
MP pede mais dados
A investigação do MP, ainda em curso, chama a atenção ainda para uma irregularidade apontada pelo Tribunal de Contas do Estado em 2014 e repetida em 2015. Conforme a lei, os recursos do Funmercado deveriam estar em uma conta corrente avulsa, mas eram misturados com outras fontes de receita da Fazenda. O maior problema dessa prática era que o Mercado não vinha se beneficiando dos rendimentos do fundo. A situação, conforme o processo, só se regularizaria por completo em 2018.
Em julho passado, a promotoria solicitou uma análise contábil sobre o uso do fundo à assessoria técnica do MP. A resposta foi de que a análise não era possível em razão da complexidade da matéria. Para tal, o técnico aconselha que o município seja oficiado a apresentar uma lista de informações complementares que incluem balancetes entre 2015 e 2019 e o período das permissões e o valor pago por cada permissionário ano a ano. Em 23 de setembro, o MP deu um prazo de 10 dias para que o município fornecesse as informações, mas elas ainda não foram anexadas ao processo.