Todos os 308 lugares do auditório do colégio Dante Alighieri, na capital paulista, estavam ocupados quando o americano Walter Robinson foi anunciado, na tarde do dia 8, pelos organizadores do Festival Piauí GloboNews de Jornalismo. Ex-editor do grupo de investigação Spotlight, do jornal Boston Globe, Robinson hipnotizou uma plateia formada por estudantes e jornalistas durante uma hora e meia de conversa.
Nascido em Massachusetts há 70 anos, Robinson comandava o Spotlight quando a equipe, provocada pelo recém-chegado diretor de Redação Marty Baron (hoje no Washington Post), começou a investigar padres pedófilos. O resultado foi uma série de reportagens, publicada em 2002, que identificou 250 padres abusadores e uma rede de proteção aos sacerdotes ligados à Arquidiocese de Boston. O trabalho venceu, no ano seguinte, o prestigiado Prêmio Pulitzer. Mas o que tornou tanto o Spotlight (a mais antiga equipe de jornalistas investigativos dos EUA) quanto Robinson internacionalmente conhecidos foi outra distinção. Em fevereiro passado, o filme Spotlight – Segredos Revelados, que conta os bastidores daquela apuração, recebeu o Oscar de melhor filme.
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Na conversa mediada pelos jornalistas Renata Lo Prete (GloboNews) e Bernardo Esteves (Piauí), Robinson, hoje dedicado à vida acadêmica, foi bem-humorado ao falar sobre as vaidades que povoam redações:
– Quanto melhor o repórter, maior o ego.
E complementou, justificando o segredo absoluto do Spotlight em relação às matérias em andamento – eles trabalham, inclusive, em um ambiente afastado dos demais colegas do jornal:
– Os jornalistas são os maiores fofoqueiros do universo. Por isso, o grupo trabalha fora da Redação. Ninguém sabe o que está sendo apurado.
Como demonstra Spotlight, o filme, o time de repórteres formado por Robinson se complementava: um entendia de jornalismo de dados (Matt Carroll), outro apurava e montava o quebra-cabeças de informações (Mike Rezendes), mas apenas Sacha Pfeiffer, que mais ouvia do que falava, mereceu elogios do ex-chefe:
– Sacha é uma das melhores entrevistadoras que já vi. Ela teve muita capacidade de conquistar a confiança das vítimas.
Desafiado pelo encolhimento das receitas de publicidade e pela revolução na forma de consumir e de distribuir notícias, o Boston Globe reduziu pela metade o número de jornalistas: de 580, em 2001, para 280. Nos EUA, o fenômeno é semelhante. Há apenas 15 mil dos 25 mil jornalistas que, em 1999, trabalhavam nas redações.
Mesmo em tempos bicudos, o Spotlight não só resistiu, como foi ampliado de quatro para seis profissionais. É que poucas coisas agregam mais valor a uma marca jornalística do que investigação consistente e profunda:
– Quando perguntamos para os nossos leitores o que eles não querem deixar de ler, eles respondem: jornalismo investigativo. Portanto, não faz sentido não investir em jornalismo investigativo.
São os incansáveis farejadores do lado torto da vida, os "gambás do jardim", como Robinson se apresentou na conferência, que fazem as perguntas indesejadas, que colocam luz sobre algo que todos precisam saber, mas que alguns teimam em ocultar:
– Quem, senão nós, vai falar pelas vítimas da sociedade?
Robinson se despediu com uma provocação:
– No Brasil, há 18 mil padres católicos (segundo censo da própria Igreja Católica realizado em 2010, são, na verdade, 22 mil), mas poucos foram identificados como molestadores de crianças. Muito menos do que na pequena Boston. Por quê? Esta é uma pergunta que vale a pena perguntar.
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Qual a importância do jornalismo investigativo nesses tempos em que recebemos avalanches de informações, especialmente por meio de redes sociais como o Twitter e o Facebook?
Penso que há muita neblina no ar sobre muitos assuntos importantes. O jornalismo investigativo tem um papel mais importante do que nunca, porque os leitores reconhecem os repórteres que se dedicam a reportagens aprofundadas, que confrontam indivíduos poderosos ou instituições como o mais importante tipo de jornalismo que fazemos. Nos EUA, pelo menos, quando leitores são questionados nas pesquisas com perguntas como "Por que você lê esse jornal?" ou "O que tem mais valor para você?", (a resposta) não são histórias em quadrinhos, não é esporte: são reportagens investigativas. Então, empresas jornalísticas devem fazer mais. Muitos dos jornais nos EUA cortaram seus investimentos em reportagens investigativas porque é muito caro, é também difícil e exige maior tempo (de apuração). Uma coisa que o filme Spotlight fez foi ajudar a começar uma nova conversa entre jornalistas sobre o jornalismo investigativo. E também, agora, muitos estudantes de jornalismo querem ser repórteres investigativos. O que é muito bom. Podemos ter muitos. A democracia, até mesmo nos EUA, está enfrentando problemas. Está com problemas também aqui, no Brasil. Para mim, a democracia não funciona em lugar algum sem uma forte imprensa livre, que faça as perguntas certas. Particularmente, o que chamo de jornalismo de responsabilidade, reportagens que realmente fazem um mergulho profundo e que respondem às perguntas que os políticos não irão responder. E que abordem histórias que as instituições que cobrimos querem manter em segredo. Isso tem um valor.
As redações estão mais enxutas, e os ganhos em escala e produção são cada vez mais exigidos. Como garantir a existência de um grupo de repórteres experientes dedicando todo o seu tempo exclusivamente para reportagens investigativas, como o time Spotlight faz, muitas vezes por longos períodos, em histórias caras e sem garantias de que atingirão o alvo?
Se você pega seus melhores repórteres e confia neles, se o projeto que você irá fazer foi prospectado antecipadamente… Nós, no Boston Globe, não começamos uma investigação até termos feito um trabalho de apuração prévia, para ter certeza de que teremos a história. Então, temos a garantia de que essa história é muito importante, que terá o maior impacto possível, que poderá chegar à Justiça. Na maioria dos casos, temos pessoas que estão dispostas a contar a história, temos documentos que comprovam. Só então lançamos a investigação. A pior coisa, como vocês sabem, é ter dois ou três repórteres que levaram seis meses (investigando) e voltam ao editor e dizem: "Desculpa, não temos a história". Isso não é bom para o futuro deles (risos). Temos sempre alguns passos de aproximação, não começamos uma investigação até estarmos certos de que acertaremos.
Durante a investigação sobre o escândalo de pedofilia na Arquidiocese de Boston, em algum momento vocês temeram não conseguir concluir a história, atingir os alvos ou mesmo chegar ao fim da apuração?
Nós ficamos sabendo, muito rapidamente, sobre o caso de um padre. E levamos uma semana para encontrar um número razoavelmente grande de padres envolvidos, entre 10 e 12. Como você sabe, a Igreja tinha 250 (padres). Mas houve momentos em que estávamos lutando contra uma grande barreira, não conseguíamos estimar o quão verdadeiro era, quem estava ao redor, acima ou abaixo (na hierarquia). Então, achamos uma forma de fazer um banco de dados com os nomes dos padres que tinham abusado de crianças, chegamos a 90. Vimos que estávamos diante de uma enorme história. Fomos atrás de documentos. Sempre soubemos que tínhamos uma história, mas não sabíamos o quão grande ela era.
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Quantas histórias o Spotlight publica por ano?
Hoje, são seis repórteres. No meu tempo, eram quatro. Sempre foram quatro. Agora, são seis, e algumas vezes eles tocam dois ou três projetos ao mesmo tempo. Alguns levam um mês, dois ou três meses, muitos levam um ano. Spotlight é o mais antigo grupo de repórteres investigativos dos EUA, de todos os jornais, desde os anos 1970. Acho que o número de reportagens que publicou, em 44 anos de existência, chega a mais de cem, isso daria duas por ano. Ou seja, em geral, seis meses para cada projeto.
Os leitores do Boston Globe reconhecem o valor desse jornalismo investigativo e estão dispostos a pagar mais por esse tipo de reportagem?
É uma boa questão. Quando o time Spotlight publica uma história, o número de leitores aumenta. A maneira como as pessoas reagem às histórias do Spotlight… Normalmente essas histórias provocam mudanças. Pessoas vão para a prisão. Corrupção é descoberta. No caso da Igreja, muitos padres foram para a cadeia, e esses horríveis casos de abusos foram revelados. Então, as pessoas reconhecem valor.
Algumas vezes, tem-se a sensação de que muitas pessoas acreditam que conteúdo é de graça, uma vez que há muitas formas de acesso. Na sua opinião, os leitores estariam dispostos a pagar por esse tipo de jornalismo diferenciado?
Acho que os jornais, para sobreviver, não podem apenas reportar o que todos os outros estão noticiando. Eles precisam dar às pessoas uma razão para comprar o seu jornal. E você só consegue fazer isso publicando histórias que elas não podem ler em outros lugares. Então, muitos jornais, inclusive o Boston Globe, não dizem mais, como fazíamos: "O jornal registrou. Nós cobrimos tudo". Agora estamos pensando o jornal como uma necessidade, indispensável para a vida das pessoas. Um jornal que lhes dá uma informação que elas não podem obter em outro lugar. Se você faz isso, elas irão pagar.
Esse é o futuro do jornalismo?
Essa é uma parte do futuro. Obviamente, a parte mais importante do futuro é como monetizar. Como iremos atrair, manter e educar a audiência e trazer de volta anunciantes? Eles foram para o Google e para o Facebook. Esse é o grande desafio. Parece que todos os empresários de mídia dizem: "Não temos saída". Mas e se todos estiverem errados? Há um caminho. As pessoas irão começar a reconhecer que devem pagar por nossas reportagens.
Como o time Spotlight enfrentou a crise econômica e a mudança de comando do Boston Globe, vendido pelo The New York Times? Houve risco de o grupo ser extinto?
Não, nunca esteve em risco. Porque o editor considera reportagem investigativa a coisa mais importante que temos. Todas as receitas caíram desde 2001, e caíram mais em 2008 e 2009. Então, perdemos muitos repórteres. Não cobrimos mais o tribunal, lugar que gerava ideias para investigações. Muitos jornais não cobrem mais o prefeito. E se o prefeito for corrupto, quem irá mostrar?
Gostou do filme Spotlight? Como se sentiu ao se ver representado pelo ator Michael Keaton?
Gostei muito! Acho que é um filme muito importante sobre o jornalismo e sobre as crianças. Tom McCarthy é um diretor muito bom, que convidou alguns dos melhores atores, e eles trabalharam por pouco dinheiro porque o assunto eram crianças. Foi gratificante. Repórteres... Nós gostamos de estar atrás das cenas, fazer perguntas, e não de responder a perguntas. Então, é um pouco estranho, passei o ano passado inteiro respondendo a perguntas. Mas é uma coisa boa porque o assunto é importante e precisamos falar sobre isso.
Segundo o filme, foi necessário que um diretor de Redação recém-chegado de Miami se interessasse pela história dos crimes na Igreja e visse o que a comunidade de Boston ou os próprios jornalistas da cidade não conseguiam enxergar. Que papel, no dia a dia da investigação, teve Marty Baron, hoje no Washington Post?
Seu papel aparece bem no filme. Ele era um cara de fora, que não devia favores a ninguém em Boston. Ele abriu a porta e viu algo, porque tinha um olhar estrangeiro. Ouvia-se falar que havia ações judiciais de 84 vítimas de um só padre, e o juiz havia arquivado os registros. Então, Baron perguntou: "Por que não vamos à Corte e pedimos para abrir esses registros?". Ninguém tinha pensado nisso. No primeiro dia como diretor, ele chamou o advogado (do jornal) e a mim e disse: "Eu gostaria que você e o seu time investigassem esse padre". Eu disse: "Oh, meu Deus! A Igreja Católica?". O Boston Globe era um jornal muito bom, mas os editores não tinham a cultura de ir além dos registros oficiais. O fato de o juiz ter arquivado os registros não parecia grande coisa. Mas era. Foi a partir daí que começamos.
Qual é o grande assunto nos EUA a ser investigado hoje?
Um assunto de que o presidente não fala é a desigualdade. Ninguém quer falar sobre isso. Todo mundo fala da classe média, mas ninguém fala dos pobres. Temos um sistema agora em que há muitas pessoas bilionárias e muitas outras não têm nada. E os dois partidos políticos sequer falam sobre isso.
Que dica o senhor dá a estudantes de jornalismo?
Nunca aceite não como resposta (risos).