por Regina Zilberman
Professora do Instituto de Letras, da UFRGS. Coautora de João Simões Lopes Neto: a invenção,o mito e a mentira (Movimento/IEL, 1973)
A inserção de João Simões Lopes Neto (1865-1916) no sistema literário nacional dá-se a partir da publicação, em 1912, de Contos gauchescos, por Echenique e Cia. O autor, porém, não era novato: tinha produzido peças de teatro, algumas impressas em tipografias locais; redigira artigos e matérias para jornais de Pelotas; e planejara Terra gaúcha, de cunho histórico, e Artinha de leitura, de teor didático. Em 1910, reunira o poemário popular do Rio Grande do Sul em Cancioneiro guasca, livro que define sua assinatura artística, como evidencia O lunar de Sepé, em que reelabora a lenda de Sepé Tiaraju.
Contudo, a linha de corte é traçada por Contos gauchescos, razão por que é a obra que receberá maior número de referências críticas, embora bastante incipientes à época em que vivia o escritor. No ano de lançamento do livro, Januário Coelho da Costa saúda seu aparecimento no Diário Popular, de Pelotas; e, em 1913, o Correio do Povo dá a palavra a Antônio Mariz, pseudônimo de José Paulo Ribeiro, para que aponte os méritos da coletânea de histórias narradas por Blau Nunes.
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A fortuna crítica dos Contos gauchescos e de seu parente próximo, as Lendas do Sul, em livro em 1913, foi irregular e descontínua nesses primeiros anos. Mas nem por isso a obra de Simões Lopes deixou de ser objeto dos intelectuais mais preparados do Estado. Em 1924, João Pinto da Silva, ao examiná-la na História literária do Rio Grande do Sul, considera seu "gauchismo" superior ao de Alcides Maia, ficcionista que, naquela década, gozava de grande prestígio local e nacional. Augusto Meyer, que veio a ser o principal divulgador da obra de Simões, dedica-lhe resenha no Correio do Povo, destacando a grandeza do escritor.
É em Prosa dos pagos, de 1943, que Meyer declara o entusiasmo motivado pelo talento do contador pelotense, relatando as impressões que nele causaram os primeiros contatos com a narrativa simoniana. Poucos anos depois, em 1950, Lúcia Miguel Pereira, então uma das mais renomadas pesquisadoras da literatura nacional, distingue a produção de João Simões, em Prosa de ficção, volume dedicado ao exame de autores brasileiros e de suas obras em circulação entre 1870 e 1920.
O lançamento, em 1949, da edição crítica dos Contos gauchescos e Lendas do Sul provocou profunda alteração no que diz respeito ao conhecimento da obra do escritor sulino. Com preparação de texto por Aurélio Buarque de Holanda, prefácio de Augusto Meyer e posfácio de Carlos Reverbel, o livro fazia jus às virtudes do texto de Simões, propiciando-lhe a difusão de que até então carecia a matéria artística que o compunha. Nas décadas seguintes, os Contos..., as Lendas... e os Casos do Romualdo, resgatados esses por Carlos Reverbel, foram objeto de estudos por historiadores da literatura, como procederá Alfredo Bosi desde a primeira edição de sua História concisa da literatura brasileira, de 1970. Nesse, e em outros trabalhos do período, um foco predomina para entender a excelência de Simões: o Regionalismo.
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Observe-se que o Regionalismo não é, ele mesmo, um problema. Considerado um período da história literária, corresponde a um tempo de grande produtividade, oportunizando a manifestação de escritores como Afonso Arinos e Hugo de Carvalho Ramos, ficcionistas ao lado dos quais Simões Lopes Neto fica bem posicionado. Considerado, por outro lado, uma poética, o Regionalismo traduz aspectos fundantes da cultura nacional, razão por que repercute em épocas posteriores e em prosadores modernos, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
Porém, encarar a obra de Simões Lopes Neto unicamente pela perspectiva do Regionalismo talvez impeça o reconhecimento de toda sua riqueza e diversidade. Eis por que, ultrapassada a etapa do alinhamento de suas criações junto à dos maiores escritores brasileiros, emergiu a necessidade de resgatá-lo dos elos que o prendiam a um período histórico e a uma tendência temática e estilística. É o que se verifica nas distintas linhagens que se debruçam sobre sua obra: as que, dando sequência à atividade investigativa com fontes primárias, recuperam obras que permaneceram inéditas ou, impressas, tornaram-se raras e inatingíveis; as que relacionam as narrativas de Simões Lopes a questões suscitadas pela Teoria da Literatura; as que propõem a superação dos limites do Regionalismo por meio da identificação da universalidade dos temas que compõem o imaginário dos textos do autor; as que extravasam as fronteiras nacionais, apontando para a interação do escritor com a produção latino-americana e internacional.
A fecundidade artística da obra de Simões Lopes Neto estimula seus leitores a entendê-la, interpretá-la e valorizá-la. Esse é um caminho que os andarengos críticos, tal como o narrador dos Contos gauchescos, ainda percorrerão por longo tempo.