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Conheci Bruno Tolentino por escrito lá por 1993, por causa de seu livro As Horas de Katharina (Cia. das Letras), coletânea de poemas atribuídos a uma freira alemã que teria vivido entre 1861 e 1927, não fosse o fato de que ela foi inventada pelo sujeito que assina o livro. Poesia estranha, por vários motivos, e poesia interessante, idem. Na orelha, o autor era apresentado como um brasileiro de 1940 que emigrou para a Europa após o Golpe de 64, e lá lecionou, escreveu e publicou, em francês e em inglês. Frases de poetas e intelectuais destacados, na quarta capa, elogiavam o brasileiro, que havia retornado ao país natal.
Vieram depois outros livros, prêmios e polêmicas. Tolentino saiu atirando, especialmente nos concretistas. Chegou a recolher em livro uma série de textos violentos, mas com agudeza intelectual não desprezível: Os Sapos de Ontem (Diadorim, 1995). Estava numa cruzada contra o que considerava um rebaixamento geral da cultura letrada no Brasil – era contra a presença de cancionistas nas escolas, por exemplo. Por aqui, eu estava em oposição a ele.
Um enigma a figura. Conversei com alguns colegas professores e críticos, que quase nunca gostavam de sua poesia e de sua figura, e do Rio me veio uma notícia complicada: Tolentino, que se apresentava como de família tradicional carioca, primo de Antônio Candido, sobrinho de Cecília Meireles, havia sido denunciado como uma fraude intelectual por Walmir Ayala, poeta, escritor e crítico de artes gaúcho radicado no Rio, que no Jornal do Comércio de lá, em 1960, escreveu um longo texto para botar ordem na casa e mostrar que aquele então jovem poeta era, no fim, um falsário, que não tinha onde cair morto.
Conheci-o ao vivo em Porto Alegre, onde por duas ou três vezes estivemos juntos. A parceria dele aqui, se bem lembro, era de alguns intelectuais conservadores, gente com quem eu tenho escassíssima afinidade. Uma das vezes, o Tolentino foi ao nosso Sarau Elétrico, no Ocidente. Leu poemas e falou mal de um monte de gente, além de mencionar o nome de algumas conquistas amorosas suas, como Vera Fischer. E contou que fora preso na Inglaterra por envolvimento com drogas – dessa experiência, aliás, proveio outro livro, Balada do Cárcere (Topbooks, 1996). Tudo estranho, com algo de fascinante.
Tudo isso me voltou agora, ao ler um livro que conta parte de sua vida. É uma biografia romanceada, ou um romance baseado na vida real – tudo é bastante incerto. O autor é um inglês, Simon Pringle, e o livro se chama Das Booty, um trocadilho entre alemão e inglês para significar “o butim” (Tradução de Pedro Sette-Câmara, editora É Realizações).
E o que se conta aqui é qualquer coisa de improvável – mas parece que verdadeiro. O autor, companheiro de amores de Bruno em Bristol, onde o poeta dava aulas, se trata em terceira pessoa para contar a empreitada amalucada do poeta, decalcado em Tolentino, e mais umas figuras esquisitas. O que fizeram? Traficaram dezenas de quilos de haxixe do Marrocos à Inglaterra. De barco trouxeram a droga até um porto espanhol, e dali subiram de carro (um discreto Jaguar cor de rosa) até Londres. O conhecimento e a prática de mar eram quase nulos, a tripulação eram os dois mais um sujeito com deficiência nas pernas, as chances de dar errado se avolumam a cada momento da narrativa, que sabe manter aceso o interesse e o vigor da história. Não vou contar o fim, claro, mas bem que dá vontade.
Depois de ler, voltei a fazer contato com aquele colega carioca que havia me passado a cópia do artigo do Ayala espinafrando Tolentino. E o colega voltou a desfazer da arte do poeta, “de realejo”. Outro crítico e escritor me assegurou que Tolentino nunca teve família tradicional, e que os parentescos letrados foram desmentidos.
Para mim, só fez aumentar o mistério de Bruno Tolentino, que além de tudo dizia ter passaporte diplomático do Vaticano. Maluco? Mitômano? Mentiroso? Talentoso? Tudo isso?
*Luís Augusto Fischer escreverá mensalmente no novo Caderno DOC.